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sexta-feira, 1 de março de 2024

NUMA POMPÍLIO - O SEGUNDO REI DE ROMA 715 – 672


Foi o lendário segundo rei de Roma, sucedendo a Rômulo após um interregno de um ano. Ele era de origem sabina, e muitas das instituições religiosas e políticas mais importantes de Roma são atribuídas a ele, como o calendário romano, as Virgens Vestais, o culto a Marte, o culto a Júpiter, e o culto a Rômulo e o ofício de Pontifex Maximus. 

De acordo com Plutarco, Numa era o mais novo dos quatro filhos de Pompônio, nascido no dia da fundação de Roma (tradicionalmente, 21 de abril de 753 aC). Ele viveu uma vida severa e disciplinada e baniu todo luxo de sua casa. Tito Tácio, rei dos sabinos e colega de Rômulo, deu em casamento sua única filha, Tatia , a Numa. Após 13 anos de casamento, Tatia morreu, precipitando a retirada de Numa para o campo. Segundo Tito Lívio, Numa residia em Cures imediatamente antes de ser eleito rei.

Tito Lívio (Lívio) e Plutarco referem-se à história de que Numa foi instruído em filosofia por Pitágoras, mas a desacreditam como cronologicamente e geograficamente implausível. 

Plutarco relata que alguns autores atribuíram a Pompílio apenas uma única filha, Pompília. A mãe de Pompilia é identificada como a primeira esposa de Numa, Tatia, ou sua segunda esposa, Lucretia. Diz-se que Pompília se casou com o filho do primeiro pontifex maximus, Numa Marcius, também chamado Numa Marcius, e dele deu à luz o futuro rei Ancus Marcius. 

Outros autores, de acordo com Plutarco, também deram a Numa cinco filhos, Pompo (ou Pomponius), Pinus, Calpus, Mamercus e Numa, dos quais as famílias nobres (gentes) dos Pomponii, Pinarii, Calpurnii, Aemilii e Pompilii respectivamente traçaram sua descida. Outros autores mais céticos, ainda segundo Plutarco, acreditavam que se tratava de genealogias fictícias para realçar o status dessas famílias.

Após a morte de Rômulo, houve um interregno de um ano, no qual os membros do Senado exerceram o poder real em rodízio, cada um por cinco dias consecutivos. Em 715 aC, depois de muitas disputas entre as facções de Rômulo (os romanos) e Tácio (os sabinos), um acordo foi alcançado, e o Senado elegeu Sabina Numa, que tinha aproximadamente quarenta anos de idade, como o próximo rei.

A princípio, Numa recusou a oferta de realeza. Ele argumentou que Roma, sob a influência do governo de Rômulo, ainda era um país em guerra. Precisava de um governante que liderasse os seus exércitos, não de alguém que vivesse uma vida de piedade e reflexão.  No entanto, seu pai e parentes sabinos, incluindo seu professor e o pai do genro de Numa, Marcus, junto com uma embaixada de dois senadores de Roma, juntos o persuadiram a aceitar. No relato de Plutarco e Tito Lívio , Numa, após ser convocado pelo Senado de Curas, recebeu os sinais do poder em meio a uma recepção entusiástica pelo povo de Roma. Ele solicitou, entretanto, que um áugure adivinhasse a opinião dos deuses sobre a perspectiva de seu reinado antes de aceitar. Júpiter foi consultado e os presságios foram favoráveis. Assim aprovado pelo povo romano e sabino e pelos céus, assumiu o cargo de Rei de Roma.

De acordo com Plutarco, o primeiro ato de Numa foi dissolver a guarda pessoal de 300 chamados celeres (os "Velozes") com os quais Rômulo se cercou permanentemente. Este gesto é interpretado de várias maneiras como autoproteção face à sua lealdade questionável, um sinal da humildade de Numa ou um sinal de paz e moderação.

Com base na cronologia romana, Numa morreu de velhice em 672 AC. Após um reinado de 43 anos, ele tinha cerca de 81 anos. A seu pedido, ele não foi cremado, mas sim enterrado em um caixão de pedra no Janículo, perto do altar de Fons. Tullus Hostilius o sucedeu.

Roma teve dois reis sucessivos que diferiam em seus métodos. De acordo com Tito Lívio, Rômulo era um rei da guerra, enquanto Numa era um rei da paz e, portanto, Roma era bem versada nas artes da guerra e da paz.

Numa era tradicionalmente celebrado pelos romanos pela sua sabedoria e piedade. Além do endosso de Júpiter, ele supostamente teve um relacionamento direto e pessoal com uma série de divindades, sendo a mais famosa a ninfa Egéria, que, segundo a lenda, o ensinou a ser um legislador sábio. De acordo com Tito Lívio, Numa afirmou que mantinha consultas noturnas com Egéria sobre a maneira adequada de instituir ritos sagrados para a cidade.  Numa então nomeou os sacerdotes para cada uma das divindades. Plutarco sugere que ele usou a superstição  para adquirir uma aura de admiração e fascínio divino, a fim de cultivar um comportamento mais gentil entre os guerreiros romanos primitivos: honrar os deuses, cumprir a lei, comportar-se humanamente com os inimigos e viver de maneira adequada.  

Diz-se que Numa foi o autor de vários "livros sagrados" nos quais escreveu ensinamentos divinos, principalmente de Egéria e das Musas. Plutarco (citando Valério Antias) e Tito Lívio registram que a seu pedido ele foi enterrado junto com esses "livros sagrados", preferindo que as regras e rituais que eles prescreviam fossem preservados na memória viva dos padres do estado, em vez do que preservados como relíquias sujeitas ao esquecimento e ao desuso. Acredita-se que cerca de metade desses livros - Plutarco e Tito Lívio diferem quanto ao seu número cobriam os sacerdócios que ele havia estabelecido ou desenvolvido, incluindo os flamines, pontífices, Salii e fetiales e seus rituais. Os demais livros tratavam de filosofia (disciplina sapientiae). De acordo com Plutarco, esses livros foram recuperados cerca de quatrocentos anos depois (na realidade, quase quinhentos anos, ou seja, em 181 aC, de acordo com Tito Lívio 40:29:3-14) por ocasião de um acidente natural que expôs o túmulo. Eles foram examinados pelo Senado, considerados impróprios para divulgação ao povo e queimados. Dionísio de Halicarnasso  sugere que eles foram, na verdade, mantidos em segredo muito próximo pelos pontífices.

Diz-se que Numa obrigou os dois deuses menores, Picus e Faunus, a entregar algumas profecias sobre o que estava por vir. 

Numa, apoiado e preparado por Egéria, supostamente travou uma batalha de inteligência com o próprio Júpiter, através de uma aparição em que Numa procurou obter um ritual de proteção contra relâmpagos e trovões.

Certa vez, quando uma praga assolava a população, um escudo de bronze caiu do céu e foi levado para Numa. Declarou que Egéria lhe dissera que era um presente de Júpiter, para ser usado na proteção de Roma. Ele ordenou cerimônias de agradecimento pelo presente e rapidamente pôs fim à praga. O Ancile tornou-se uma relíquia sagrada dos romanos e foi colocado aos cuidados dos Salii.

Um dos primeiros atos de Numa foi a construção de um templo de Jano como indicador de paz e guerra. O templo foi construído aos pés do Argiletum, uma estrada da cidade. Depois de garantir a paz com os vizinhos de Roma, as portas dos templos foram fechadas e assim permaneceram durante o reinado de Numa, um caso único na história romana.

Outra criação atribuída a Numa foi o culto de Terminus, um deus das fronteiras. Através deste rito, que envolvia sacrifícios em propriedades privadas, limites e marcos, Numa alegadamente procurou incutir nos romanos o respeito pela propriedade legal e pelas relações não violentas com os vizinhos. O culto de Terminus, pregava Numa, envolvia ausência de violência e assassinato. O deus era um testamento de justiça e um guardião da paz. De uma forma algo comparável, mais moral do que legal, Numa procurou associar-se a um dos papéis de Vegoia no sistema religioso dos vizinhos etruscos, ao decidir estabelecer os limites oficiais do território de Roma, que Rômulo nunca quis, presumivelmente com a mesma preocupação de preservar a paz. 

Reconhecendo a importância primordial do Ancile, o rei Numa mandou fazer onze escudos correspondentes, tão perfeitos que ninguém, mesmo Numa, conseguia distinguir o original das cópias. Esses escudos eram os Ancilia, os escudos sagrados de Júpiter, que eram carregados todos os anos em procissão pelos sacerdotes Salii. Numa também estabeleceu o cargo e os deveres do Pontifex Maximus e instituiu (versão de Plutarco) os flamens de Quirino, em homenagem a Rômulo, além dos de Júpiter e Marte que já existiam. Numa também trouxe as Virgens Vestais de Alba Longa para Roma. Plutarco acrescenta que eles eram então em número de dois, foram posteriormente aumentados para quatro por Servius Tullius, e assim permaneceram através dos tempos.

Por tradição, Numa promulgou uma reforma do calendário, que dividiu o ano em doze meses de acordo com o curso lunar, mas ajustou para estar de acordo com a revolução solsticial. Foi nessa época que os meses de janeiro e fevereiro foram introduzidos. Numa também fez a distinção entre os dias serem profanos ou sagrados.

Noutras instituições romanas estabelecidas por Numa, Plutarco julgou detectar uma influência lacónica, atribuindo a ligação à cultura sabina de Numa, pois “Numa era descendente dos sabinos, que se declaram uma colónia dos lacedemônios”.

Tito Lívio e Dionísio fornecem um quadro amplamente concordante do vasto trabalho de fundação realizado por Numa em relação à religião e às instituições religiosas romanas.

Tito Lívio começa com os sacerdócios que Numa estabeleceu. Numa criou um flamen residencial para Júpiter dotado de insígnias régias, que poderia desempenhar as funções sagradas do ofício real, que Numa normalmente desempenhava: Numa o fez para evitar o abandono dos ritos sempre que o rei ia para a guerra, pois via o atitude guerreira dos romanos. Ele também criou as flâmines de Marte e Quirino, bem como as virgens Vestais e o décimo segundo Salii de Marte Gradivus. Depois, escolheu Numa Marcius como pontífice. Para ele, ele concedeu todas as cerimônias sagradas, seus livros e selos. As seguintes palavras desta passagem foram consideradas uma exposição sistemática e sumária da religião romana: 

"quibus hostiis, quibus diebus, ad quae templa sacra fierent atque unde in eos sumptus pecunia erogaretur. Cetera quoque omnia publica privataque sacra pontificis scitis subiecit, ut esset quo consultum plebes veniret, ne quid divini iuris negligendo patrios ritus peregrinosque adsciscendo turbaretur. Nec celestes modo caerimonias sed iusta quoque funebria placandosque manes ut idem pontificem edoceret, quaeque prodigia fulminibus a Iove quo visu missa susciperentur atque curarentur".


[traduzido]

...[mostrando] com quais vítimas, em que dias e em quais templos os ritos sagrados deveriam ser realizados e de quais fundos o dinheiro deveria ser retirado para custear as despesas. Ele também colocou todas as outras instituições religiosas, públicas e privadas, sob o controle dos decretos do pontífice, a fim de que pudesse haver alguma autoridade a quem o povo deveria pedir conselho, para evitar qualquer confusão no culto divino que estava sendo realizado. causada por negligenciarem as cerimônias de seu próprio país e adotarem cerimônias estrangeiras. Ele ordenou ainda que o mesmo pontífice instruísse o povo não apenas nas cerimônias relacionadas com as divindades celestiais, mas também na devida realização das solenidades fúnebres e em como apaziguar as sombras dos mortos; e quais prodígios enviados por raios ou qualquer outro fenômeno deveriam ser atendidos e expiados.


Tito Lívio enumera as hostiae, as vítimas, como a primeira competência dos pontífices: a seguir vêm os dias, os templos, o dinheiro, outras cerimónias sagradas, os funerais e os prodígios.

Tito Lívio continua dizendo que Numa dedicou um altar a Júpiter Elício como fonte de conhecimento religioso e consultou o deus por meio de augúrios sobre o que deveria ser expiado; ele instituiu um festival anual para Fides (Fé) e ordenou que as três chamas principais fossem levadas ao seu templo em uma carruagem arqueada e realizassem o serviço com as mãos enroladas até os dedos, o que significa que a fé tinha que ser sagrada como no direito dos homens mão; entre muitos outros ritos que instituiu, dedicou lugares do Argei.

Dionísio de Halicarnasso dedica muito mais espaço às reformas religiosas de Numa. Em seu relato é atribuída a Numa a instituição de oito sacerdócios: curiones, flamines, celeres, áugures, vestais, salii, feciais e pontífices. Ele diz apenas algumas palavras sobre os curiones, encarregados de cuidar dos sacrifícios das curiae ; as chamas; os tribuni celerum,  que eram guarda-costas do rei mas que também participavam de algumas cerimônias religiosas; e os áugures, encarregados da adivinhação oficial.

Plutarco registra alguns deles, como sacrificar um número ímpar de vítimas aos deuses celestiais e um número par aos deuses inferiores; a proibição de fazer libações aos deuses com vinho; a proibição de sacrifício sem farinha; a necessidade de dar uma volta completa sobre si mesmo enquanto ora e adora os deuses.

O ritual do spolia opima também é atribuído a Numa por fontes antigas.

Finalmente, Arnóbio afirma que as indigitamenta foram atribuídas a ele.

Numa foi creditado por dividir o território imediato de Roma em pagi (aldeias) e estabelecer as guildas ocupacionais tradicionais de Roma:

Assim, distinguindo todo o povo pelas diversas artes e ofícios, formou companhias de músicos, ourives, carpinteiros, tintureiros, sapateiros, esfoladores, braseiros e oleiros; e todos os outros artesãos ele compôs e reduziu em uma única companhia, nomeando cada um com seus próprios tribunais, conselhos e observâncias. 

Plutarco, da mesma maneira, fala da religião primitiva dos romanos, que era espiritual e sem imagem. Ele diz que Numa "proibiu os romanos de representar a divindade na forma de homem ou de animal. Nem havia entre eles anteriormente qualquer imagem ou estátua do Ser Divino; durante os primeiros cento e setenta anos eles construíram templos, de fato, e outras cúpulas sagradas, mas não colocou nelas nenhuma figura de qualquer espécie; persuadido de que é ímpio representar as coisas divinas pelo que é perecível, e que não podemos ter nenhuma concepção de Deus senão pelo entendimento”.

William Blackstone diz que Numa pode ser creditado como o "inventor original" das corporações: "Elas foram introduzidas, como diz Plutarco, por Numa; que, ao descobrir, após sua ascensão, a cidade despedaçada pelas duas facções rivais dos Sabinos e dos Romanos, considerei uma medida prudente e política subdividir estes dois em muitos outros menores, instituindo sociedades separadas de cada comércio e profissão manual. 


Tito Lívio narra que, em 181 a.C., enquanto escavavam no campo do escriba L. Petilius, ao pé do Ianiculum , os camponeses encontraram dois cofres de pedra, com dois metros e meio de comprimento e um metro e vinte de largura, inscritos tanto em caracteres latinos como em caracteres gregos, um afirmando que Numa Pompilus, filho de Pompon, rei dos romanos, estava enterrado (ali) e a outra que os livros de Numa estavam dentro dele. Quando Petilius, após o conselho de seus amigos, o abriu, aquele que estava inscrito com o nome do rei foi encontrado vazio, o outro contendo dois maços de sete livros cada, não completos, mas parecendo muito recentes, sete em latim tratando da lei pontifícia e sete em grego sobre filosofia como era naquele passado remoto.

Os livros foram mostrados a outras pessoas e o fato tornou-se público. O pretor Q. Petilius, que era amigo de L. Petilius, os solicitou, considerou-os muito perigosos para a religião e disse a Lúcio que os queimaria, mas permitiu que ele tentasse recuperá-los por meios legais ou outros. Os escribas levaram o caso aos tribunos da plebe, e os tribunos, por sua vez, levaram-no ao Senado. O pretor declarou que estava pronto a prestar juramento de que não era bom ler ou armazenar aqueles livros, e o Senado deliberou que a oferta do juramento era suficiente por si só, que os livros fossem queimados no Comitium como o mais rápido possível e que uma indenização fixada pelo pretor e pelos tribunos seja paga ao proprietário. L. Petilius recusou-se a aceitar a soma. Os livros foram queimados pelos vitimários.

A ação do pretor tem sido vista como motivada politicamente e de acordo com a reação catônica daqueles anos.  É relevante, porém, que alguns dos analistas daquela época ou apenas alguns anos depois, não pareçam ter qualquer dúvida sobre a autenticidade dos livros.  Todo o incidente foi analisado criticamente novamente pelo filólogo E. Peruzzi, que, ao comparar as diferentes versões, se esforça para demonstrar a autenticidade geral dos livros.  Por outro lado, a posição do MJ Pena é mais reservada e crítica. 

Os estudiosos francófonos A. Delatte e J. Carcopino acreditam que o incidente foi resultado de uma iniciativa real da seita pitagórica de Roma. Os temores das autoridades romanas devem ser explicados em conexão com a natureza das doutrinas contidas nos livros, que supostamente continham um tipo de Physikòs lógos, uma interpretação parcialmente moral e parcialmente cosmológica das crenças religiosas que foi comprovado por Delatte como próprio do antigo pitagorismo. Parte disso deve ter estado em contradição com as crenças da arte fulgural e inaugural e da procuratio dos prodígios.  A maioria dos autores antigos relata a presença de tratados de filosofia pitagórica, mas alguns, como Semprônio Tuditanus,  mencionam apenas decretos religiosos. 


O filósofo cristão Clemente de Alexandria, em seu livro Stromata, afirmou que o rei Numa Pompilius foi influenciado pela lei mosaica e, por isso, se absteve de fazer imagens humanas em esculturas.  Os estudiosos modernos não aceitam esta afirmação, pois não havia contatos conhecidos entre os primeiros reis de Roma e os antigos hebreus.


RÔMULO - O PRIMEIRO REI DE ROMA 753 – 716

 


Foi o primeiro rei de Roma. Segundo a mitologia romana, Rômulo e Remo eram filhos de Reia Sílvia com o deus Marte. Seu avô materno era Numitor, o legítimo rei de Alba Longa, através do qual os gêmeos descendiam tanto do herói troiano Enéias, quanto de Latinus, o rei do Lácio. 

Antes do nascimento dos gêmeos, o trono de Numitor foi usurpado por seu irmão, Amulius, que assassinou o filho ou filhos de Numitor e condenou Reia Silvia à virgindade perpétua, consagrando-a como Vestal. Quando Rhea engravidou, ela afirmou que havia sido visitada pelo deus Marte. Amúlio a aprisionou e, após o nascimento dos gêmeos, ordenou que fossem jogados no Tibre. Mas como o rio havia sido inundado pela chuva, os criados encarregados de eliminar as crianças não conseguiram chegar às suas margens e, assim, expuseram os gêmeos sob uma figueira no sopé do Monte Palatino.

No relato tradicional, uma loba encontrou os gêmeos e os amamentou até serem encontrados pelo pastor do rei, Faustulus, e sua esposa, Acca Larentia. Os irmãos cresceram até a idade adulta entre os pastores e os habitantes das colinas. Depois de se envolver em um conflito entre os seguidores de Amulius e os de seu avô Numitor, Faustulus contou-lhes sua origem. Com a ajuda de seus amigos, eles atraíram Amulius para uma emboscada e o mataram, restaurando seu avô ao trono. Os príncipes então partiram para estabelecer uma cidade própria.

Eles retornaram às colinas com vista para o Tibre, perto de onde haviam sido expostos quando crianças, mas discordaram sobre o local de sua nova cidade. Cada um se posicionou em uma colina diferente e esperou um presságio para decidir entre eles. Remo avistou seis abutres sobre o Monte Aventino, então Rômulo avistou um bando de doze sobre o Monte Palatino. Remo defendeu o Aventino com base na prioridade, Rômulo, o Palatino, com base no número. O conflito aumentou e Rômulo ou um de seus seguidores matou Remo.  Em uma variante da lenda, os áugures favoreceram Rômulo, que começou a abrir um sulco quadrado ao redor do Monte Palatino para demarcar as muralhas da futura cidade (Roma Quadrata). Quando Remo saltou zombeteiramente sobre os "muros" para mostrar o quão inadequados eles eram contra os invasores, Rômulo o derrubou com raiva. Em outra variante, Remus foi morto durante uma confusão, junto com Faustulus.

A fundação de Roma era comemorada anualmente no dia 21 de abril de 753 a.C., com a festa da Parília. O primeiro ato de Rômulo foi fortificar o Palatino com o Murus Romuli, durante o qual ele fez um sacrifício aos deuses. Ele traçou os limites da cidade com um sulco que abriu, realizou outro sacrifício e, com seus seguidores, começou a trabalhar na construção da própria cidade.  Rômulo buscou o consentimento do povo para se tornar seu rei. Com a ajuda de Numitor, dirigiu-se a eles e recebeu sua aprovação. Rômulo aceitou a coroa depois de sacrificar e orar a Júpiter, e depois de receber presságios favoráveis. 

Rômulo dividiu a população em três tribos, conhecidas como Ramnes, Titienses e Luceres, para fins fiscais e militares. Cada tribo era presidida por um oficial conhecido como tribuno e era ainda dividida em dez cúrias, ou distritos, cada uma presidida por um oficial conhecido como curio. Rômulo também distribuiu uma porção de terra para cada distrito, para o benefício do povo.  Nada se sabe sobre a maneira como as tribos e cúrias eram tributadas, mas para o imposto militar, cada cúria era responsável por fornecer cem soldados de infantaria, uma unidade conhecida como século, e dez cavalaria. Cada tribo romuleana forneceu assim cerca de mil infantaria e um século de cavalaria; a trezenta cavalaria ficou conhecida como Celeres, "os velozes", e formou a guarda-costas real.

Escolhendo cem homens das famílias líderes, Rômulo estabeleceu o senado romano. Ele chamou esses homens de patres, os pais da cidade; seus descendentes passaram a ser conhecidos como “patrícios”, formando uma das duas principais classes sociais de Roma. A outra classe, conhecida como “plebe” ou “plebeus”, consistia nos servos, libertos, fugitivos que buscavam asilo em Roma, aqueles capturados na guerra e outros que obtiveram a cidadania romana ao longo do tempo. 

Para incentivar o crescimento da cidade, Rômulo proibiu o infanticídio e estabeleceu um asilo para fugitivos no Monte Capitolino. Aqui, tanto homens livres como escravos podiam reivindicar proteção e buscar a cidadania romana.

Os dois reis presidiram a crescente cidade de Roma durante vários anos, antes de Tácio ser morto num motim em Lavínio, onde tinha ido fazer um sacrifício. Pouco antes, um grupo de enviados de Laurentum reclamou do tratamento recebido pelos parentes de Tácio, e ele decidiu a questão contra os embaixadores. Rômulo resistiu aos apelos para vingar a morte do rei sabino, reafirmando a aliança romana com Lavínio e talvez evitando que sua cidade se fragmentasse em linhas étnicas.

Nos anos que se seguiram à morte de Tácio, diz-se que Rômulo conquistou a cidade de Fidenae, que, alarmada com o poder ascendente de Roma, começou a atacar o território romano. Os romanos atraíram os Fidenates para uma emboscada e derrotaram seu exército; ao recuar para sua cidade, os romanos os seguiram antes que os portões pudessem ser fechados e capturaram a cidade. A cidade etrusca de Veii, a 15 quilômetros de Roma acima do Tibre, também invadiu o território romano, prenunciando o papel daquela cidade como principal rival do poder romano nos três séculos seguintes. Rômulo derrotou o exército de Veii, mas achou a cidade muito bem defendida para ser sitiada e, em vez disso, devastou o campo.

Após um reinado de trinta e sete anos. Diz-se que Rômulo desapareceu em um redemoinho durante uma tempestade repentina e violenta, enquanto revisava suas tropas no Campo de Marte. Tito Lívio diz que Rômulo foi assassinado pelos senadores, dilacerado por ciúmes ou foi elevado ao céu por Marte, deus da guerra. Tito Lívio acredita na última teoria sobre a morte do lendário rei, pois permite aos romanos acreditar que os deuses estão do seu lado, motivo para continuarem a expansão sob o nome de Rômulo. 

Rômulo adquiriu seguidores de culto, que mais tarde foram assimilados ao culto de Quirino, talvez originalmente o deus indígena da população sabina. Como os sabinos não tinham rei próprio desde a morte de Tito Tácio, o próximo rei de Roma, Numa Pompílio, foi escolhido entre os sabinos. 

Várias fontes afirmam que Rômulo tinha uma esposa, Hersília. Em Tito Lívio, após a derrota dos Caeninenses e dos Antemnates, as mulheres sabinas imploraram a Hersília que intercedesse junto ao marido em nome de suas famílias, para que fossem recebidas no Estado em vez de mortas pelas armas romanas. Em Dionísio, a própria Hersília era uma das mulheres sabinas e a única que já era casada no momento de seu sequestro. Dionísio explica que ela foi confundida com virgem ou, ele pensa mais provavelmente, que ela era mãe de um dos sequestrados e se recusou a abandonar a filha. Plutarco também relata que Hersília era uma das mulheres sabinas e a única já casada. Ele também menciona que algumas autoridades fazem de Hersília a esposa de Hostus Hostilius, em vez de Rômulo. Dois filhos são atribuídos a Rômulo em Plutarco: uma filha, Prima, e um filho, Avilio, mas aqui Plutarco observa que sua fonte, Zenódoto de Trezena, é amplamente contestada. 

Tito Lívio, Dionísio e Plutarco contam com Quintus Fabius Pictor como fonte. Outras fontes significativas incluem os Fastos de Ovídio e a Eneida de Virgílio. Os historiadores gregos tradicionalmente afirmavam que Roma foi fundada pelos gregos, uma afirmação que remonta ao logógrafo Hellanicus de Lesbos do século V a.C., que nomeou Enéias como seu fundador. Os historiadores romanos conectam Rômulo a Enéias por ascendência e mencionam um assentamento anterior no Monte Palatino , às vezes atribuindo-o a Evandro e seus colonos gregos. Para os romanos, Roma eram as instituições e tradições que eles atribuíam ao seu lendário fundador, o primeiro “Romano”. 

A lenda como um todo resume as ideias de Roma sobre si mesma, suas origens e valores morais. Para os estudiosos modernos, continua a ser um dos mais complexos e problemáticos de todos os mitos fundamentais. Os historiadores antigos não tinham dúvidas de que Rômulo deu seu nome à cidade. A maioria dos historiadores modernos acredita que seu nome é uma formação posterior do nome da cidade. Os historiadores romanos dataram a fundação da cidade entre 758 e 728 aC, e Plutarco relata o cálculo do amigo de Varrão, Tarutius, de que 771 aC foi o ano de nascimento de Rômulo e seu gêmeo. A tradição que deu a Rômulo um ancestral distante no semidivino príncipe troiano Enéias foi ainda mais embelezada, e Rômulo se tornou o ancestral direto da primeira dinastia imperial de Roma. Não está claro se a história de Rômulo ou a dos gêmeos são elementos originais do mito fundador, ou se ambos ou um deles foram adicionados.

Ennius 180 aC refere-se a Rômulo como uma divindade por direito próprio, sem referência a Quirino. Os mitógrafos romanos identificaram este último como uma divindade de guerra originalmente sabina e, portanto, identificado com o Marte romano. Lucílio lista Quirino e Rômulo como divindades separadas, e Varrão concede-lhes templos diferentes. Imagens de Quirino mostravam-no como um guerreiro barbudo empunhando uma lança como um deus da guerra, a personificação da força romana e uma semelhança divinizada da cidade de Roma. Ele tinha um Flamen Maior chamado Flamen Quirinalis, que supervisionou seu culto e rituais na ordenação da religião romana atribuída ao sucessor real de Rômulo, Numa Pompilius. No entanto, não há evidências da fusão Rômulo-Quirino antes do século I aC. 

Ovídio em Metamorfoses XIV (linhas 805-828) dá uma descrição da deificação de Rômulo e sua esposa Hersília, aos quais são dados os novos nomes de Quirino e Hora respectivamente. Marte, o pai de Rômulo, recebe permissão de Júpiter para levar seu filho ao Olimpo para viver com os Olimpianos.

Uma teoria sobre esta tradição propõe o surgimento de duas figuras míticas de um herói anterior e singular. Embora Rômulo seja um herói fundador, Quirino pode ter sido um deus da colheita, e a Fornacalia um festival que celebra uma colheita básica ( espelta ). Através das datas tradicionais dos contos e das festas, cada uma delas está associada uma à outra. Uma lenda do assassinato de tal herói fundador, o sepultamento do corpo do herói nos campos (encontrado em alguns relatos) e um festival associado a esse herói, um deus da colheita e um alimento básico é um padrão reconhecido por antropólogos. Chamado de "arquétipo dema", esse padrão sugere que em uma tradição anterior, o deus e o herói eram na verdade a mesma figura e mais tarde evoluíram para dois. 

As possíveis bases históricas para a ampla narrativa mitológica permanecem obscuras e controversas. 

Os estudos modernos abordam as várias histórias conhecidas do mito como elaborações cumulativas e interpretações posteriores do mito da fundação romana. Versões e comparações particulares foram apresentadas pelos historiadores romanos como oficiais, uma história oficial desprovida de contradições e variantes desordenadas para justificar desenvolvimentos, genealogias e ações contemporâneas em relação à moralidade romana. Outras narrativas parecem representar tradições populares ou folclóricas; alguns deles permanecem inescrutáveis ​​em propósito e significado. Wiseman resume toda a questão como a mitografia de uma fundação e de uma história primitiva invulgarmente problemáticas. 

Os elementos desagradáveis ​​de muitos dos mitos relativos a Rômulo levaram alguns estudiosos a descrevê-los como "vergonhosos" ou "de má reputação".  Na antiguidade, essas histórias tornaram-se parte da propaganda anti-romana e antipagã. Mais recentemente, o historiador Hermann Strasburger postulou que estes nunca fizeram parte da tradição romana autêntica, mas foram inventados e popularizados pelos inimigos de Roma, provavelmente na Magna Grécia, durante a última parte do século IV aC.  Esta hipótese é rejeitada por outros estudiosos, como Tim Cornell (1995), que observa que neste período, a história de Rômulo e Remo já havia assumido sua forma padrão e era amplamente aceita em Roma. Outros elementos do mito de Romulus se assemelham claramente a elementos comuns de contos e lendas populares e, portanto, uma forte evidência de que as histórias eram antigas e indígenas.   Da mesma forma, Momigliano considera o argumento de Strasburger bem desenvolvido, mas totalmente implausível; se os mitos de Rômulo eram um exercício de zombaria, eram um fracasso evidente.


domingo, 18 de fevereiro de 2024

A CIVILIZAÇÃO SÍRIO-CANANEIA

 



Entre os anos 2200 e 600 a.C., em uma encruzilhada entre povos poderosos surgiu uma civilização marginal, porém com legados duradouros na língua, na escrita alfabética, na religião e na difusão de vários elementos culturais, do vinho ao vidro.

A civilização do Levante ou cananita não se restringe a uma só etnia. Reúne povos diversos em um território com traços sociais e culturais semelhantes. O Levante ou Síria-Palestina, a região onde o Mediterrâneo oriental liga a Anatólia ao Egito, teve a benção e a maldição de ser o ponto de ligação dos três continentes. Se a difusão das inovações da África e da Mesopotâmia chegavam cedo, cedo também chegavam os invasores. Ainda sim, floresceu uma das mais fascinantes civilizações.

Tempos imemoráveis: a pré-história

A primeira cultura arqueológica distinta a emergir na região foi a Natufiana (13050-7750 a.C.). Essa cultura tecnológica do mesolítico adotou uma vida semi-sedentária, abrigando-se em cavernas e acampamentos. Os natufianos colhiam grãos selvagens, produziam pão (e cerveja!) e caçavam gazelas. Domesticavam cachorros e demonstravam hierarquização social em seus cemitérios. Essa cultura recebe o nome de seu principal sítio arqueológico, Natuf, onde está a Caverna de Shuqba, a 28 km a noroeste de Jerusalém, nas montanhas da Judeia. Na caverna de Ain Sakhri (Belém) foi encontrada uma das mais antigas esculturas representando um casal, os Amantes de Ain Sakhri (9000 a.C.).

Por volta de 8800 a.C. aparecem vilas permanentes como Biblos, Gilgal e Tell es-Sultan (Jericó). As ferramentas de pedra mais elaboradas do neolítico inicial (pré-cerâmico) permitiram a agricultura de aveia e trigo. Em Tell es-Sultan construíram uma torre com finalidade sem explicações e um muro ao redor da cidade. Em Tell Aswad, no sul da Síria, passou-se a construir casas de adobe, utilizar lâminas de obsidiana, moldar figuras em argila, produzir cestos e a domesticar animais.     

 

A emergência da civilização

Por volta do ano 4 000 a.C. a desertificação do Saara e da Arábia intensificou a vida sedentária em vilas e nascentes cidades no Egito e Mesopotâmia. Inicia-se o uso da metalurgia (o cobre) e do comércio.

Esse período (especialmente entre 3750 e 2800 a.C.) coincide com a aparição dos povos falando dialetos proto-semíticos, um ramo da família linguística afro-asiática. Pela linguística comparativa é possível inferir a sociedade e cultura desses povos. Certamente era uma sociedade patriarcal, com palavras distintas para “pai” (*’ab-) e “mãe” (*’imm-), mas “filha” (*bint-) é uma variação de filho (*bn). Há palavras comuns para “chefe, rei” (*mlk) e “senhor, dono, marido” (*b’l) e “serva” (*’mt), inferindo que homens prisioneiros de guerra seriam executados. Apesar de não haver uma raiz comum para o termo “religião”, há vários outros para “sacrifício” (*b), “unção” (*m), “proibição” (*rm), “santificação” (*qd) e “deus” (*il-). Termos sobre agricultura e pastoralismo abundam. Sabemos assim que alguns proto-semitas viviam em rotas pastoralistas semi-nômades enquanto outros moravam em aldeamentos e cidades. Tecnologicamente, suas habitações deveriam possuir portas, cadeiras, camas, poços e fundiam metais, embora somente o termo prata seja reconstituído no proto-semítico.

Na Mesopotâmia, o povo sumério funda cidades-estados nas quais o templo ocupa as funções de redistribuição e de mercado. No Egito começa o processo de unificação de reinos locais (nomos) ao longo do vale do Nilo. Aproximadamente na Idade do Bronze, a escrita emerge, primeiro como controle contábil, depois para registros de textos mais longos, quase que simultaneamente na Mesopotâmia (escrita cuneiforme) e no Egito (escrita hieroglífica). A região sírio-palestina ficaria constantemente influenciada por essas duas civilizações.

A área do Levante — com cerca de 350 mil km2, algo próximo à área do estado do Mato Grosso do Sul — se beneficiou de sua posição estratégica como conector de civilizações. No entanto, sua geografia também foi sua maldição. Essa região seria a mais belicosa de todo o mundo até hoje.


Sujeição aos estados e Impérios Arcaicos do 3º milênio

Nos meados do terceiro milênio, populações semitas se misturaram aos povos da Mesopotâmia. A população dos amorreus (amoritas) semitas do norte da Mesopotâmia cresce e passam a viver na Síria, Palestina e sul da Mesopotâmia. Os amoritas fundam as cidades de Mari, Yamhad, Ebla e Babilônia e, após o colapso das cidades-estados sumérias, emergiram no Império de Acade (c2400-2150 a.C). Acade seria a primeira civilização semítica na região e o primeiro império com alcance além das fronteiras locais, incluindo a região de Canaã.

Na Alta Mesopotâmia síria a cidade de Ebla (c2500-2250 a.C) manteve complexas atividades comerciais, como atestam os contratos, cartas e literatura nessa língua aparentada do acadiano. Em sua religião aparecem nomes comuns do panteão cananeu como Dagon, Shamash, Reshef, Hadad, Ashtarte, Moloch, Koshar, Asherah e Qemosh. Há registros de necromancia (yid’oni) e da crença de um lugar dos mortos (sheol).


Cultura distintivamente sírio-cananeia

O enfraquecimento das potências regionais no segundo milênio deram espaço para Canaã ser ocupada por vários povos, como os hurritas (1900-1300 a.C.), os nômades semitas habiru (1800-1450 a.C.) e mesmo povos indoeuropeus como os hititas (heteus bíblicos?). Entre os anos 2200 e 1800 a.C. foi o período quando uma cultura distintivamente sírio-cananeia se formaria no Levante.

O comércio de longa distância é indicado pelo misterioso silabário de Biblos. Embora haja poucos testemunhos dessa escrita, surpreendem que sejam encontrados em Megido, no Delta do Nilo e até em Rieti e Trieste, na Itália. Essa escrita ainda não decifrada da Idade do Bronze (1800-1500 a.C.) atesta uma vívida integração de mundos distantes que somente seria documentada séculos mais tarde nas cartas de Amarna. Por volta de 1600, provavelmente foram os mercadores fenício-cananeus que propagaram a viticultura pela bacia do Mediterrâneo.

Entre 2200 e 1800 a.C., na região da Síria-Palestina um conjunto de dialetos semíticos do noroeste se firmou. A partir desse contínuo linguístico emergeriam o ugarítico, o fenício, o hebraico, o moabita, o aramaico antigo e outras variedades pouco atestadas. Embora somente no próximo milênio a escrita se tornaria mais popular, há uso das escritas e línguas egípcia e acadiana. Formas simplificadas dos hieróglifos consonantais aparecem em inscrições proto-sinaíticas e proto-canaanitas em Sarabit al-Khadim, Wadi el-Hol, Siquém, Gezer, Tell el-Ḥesī, Tell al-ʿAjūl, Beth-Shemesh, Megido, Tell Rehov, Tell Beit Mirsim e Láquis. (c.1600-1500). Na Idade do Ferro essa escrita evoluiria de um sistema acrofonético para uma escrita fonética pura, nas quais os signos representam sons. Todavia, não eram registradas as vogais, razão para ser chamada mais apropriadamente de escrita abjad que escrita alfabética.

Dessa época aparece a primeira menção inequívoca a Canaã. A estátua do Rei Idrimi, do século XVI a.C., conta como ele e sua família fugiram de Yamhad (Alepo). Por um tempo, Idrimi se refugiou em Canaã, vivendo entre guerreiros hapiru por sete anos. Idrimi fez uma aliança com um rei das hordas nômades que lhe cedeu tropas para lutar contra os hititas. Idrimi conquistaria a cidade costeira síria de Alalakh, onde reinaria por 30 anos como vassalo dos hurritas.

A Civilização de Ugarit no 2º milênio

Em um caso isolado, em Ugarit, a escrita cuneiforme foi adaptada para a língua canaanita. Nessa cidade comercial estrategicamente localizada na costa norte da Síria floresceu entre 1800 e 1175 a.C. uma civilização cuja literatura nos alcançou. Há nos mitos e lendas ugaríticas menção do deus El, como senhor dos deuses e dos homens, bem como várias expressões poéticas paralelas a alguns poemas (Canção do Mar) e salmos bíblicos. Fora da cidade, o uso do ugarítico aparece em inscrições cuneiformes sendo encontradas mais ao sul, em Beth Shemesh, Taanach e Monte Tabor. Na faixa entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo, 97 textos cuneiformes foram encontrados dessa época, indicando um uso restrito da escrita, a qual seria limitada à administração pública.

No período de Amarna, Canaã aparece sujeita ao Egito e essa situação continuou até por volta da Estela de Merneptá (1207 a.C.). Há traços da presença de asiáticos semitas e cananeus no Egito como da presença de egípcios em Canaã e nos desertos ao sul. Nas tumbas e templos egípcios, os cananeus aparecem vassalos, geralmente vestidos com túnicas longas e faixas na cabeça, pagando tributo ao Egito. São escravos, soldados, mercadores de madeira, cobre, vinho e azeite. Desprezados, são representados como cães latindo e obedecendo às ordens de seus senhores egípcios.

Os pastoralistas semíticos permitiram o renascimento urbano. O excedente de lã, leite e carne sustentava a produção têxtil e alimentava uma população cada vez mais crescente nas aldeias e cidades. Ao contrário do que possa o termo inferir, os nômades pastoralistas não andavam a esmo, mas percorriam rotas acompanhando as estações em busca de melhores pastos.

Na crise da Idade do Bronze, a influência egípcia caiu consideravelmente. Um conto desse período, A jornada de Wen-Amon relata as dificuldades de um oficial egípcio para conseguir madeira com o rei de Biblos.

Berços de civilizações do 1º milênio

Na crise da Idade do Bronze (c.1200-1000 a.C.), os chamados povos do mar destruíram os estados hititas e Ugarit, ameaçaram a Mesopotâmia e o Egito (que fecharam em si, priorizando suas defesas internas).

Na Idade do Ferro (1200-500 a. C.), nos intervalos das guerras que mantinham o delicado equilíbrio entre Egito e Mesopotâmia, vários pequenos estados floresceram na região, aproveitando-se da localização estratégica para o comércio. Foi o apogeu, quando essa terra manou leite e mel. A agricultura floresceu e com ela o fábrico de vasos para armazenar azeite, grãos e vinho. O comércio com povos vizinhos trouxe prosperidade. Nessa época, populariza a casa de quatro cômodos, indicando um crescimento na densidade populacional.

A necessidade de registrar essas transações comerciais fez com que a escrita alfabética (abjad) popularizasse. A versão ocidental, ou fenícia, propagou-se pelo Mediterrâneo enquanto a variante oriental, o aramaico, propagou-se pela Ásia.

Fenícios

Hábeis navegadores e mercadores das costas do Líbano, fundaram colônias pelo Meditarrâneo, como a notória Cartago. Foram produtores e intermediários na produção de tinturas, têxteis, couros, madeira, especiarias, vidro, vinho, azeite e outros produtos. Sua escrita, adotada pelos gregos com sons vocálicos por volta de 800 d.C., seria a base para os alfabetos grego, latino e cirílico. Algumas palavras no português testemunham essa aventura comercial: mapa, saco, talha, malha, África e Málaga.

Arameus: do sul da Síria até as margens norte do Eufrates, uma série de pequenos estados dominavam as rotas de caravanas integrando a Mesopotâmia e a costa mediterrânea. Sua língua, o aramaico, atestada desde 850 a.C., seria a primeira língua-franca, usada desde o sul do Egito até a Ásia Central. Levada por mercadores e adotada como língua de trabalho dos impérios persa e helenísticos, essa escrita semítica seria propagada até a Índia e de lá, para o sudoeste asiático.

Hebreus: na região montanhosa entre o rio Jordão e o Deserto do Negebe, as ações de profetas transformaram um culto nacional na primeira religião monoteísta com pretensões universais.

Filisteus e povos do mar: provavelmente povos com origens nos Bálcãs e Anatólia (incluíndo indoeuropeus com origens na civilização micênica de Creta) passaram a aterrorizar (c. 1180) as regiões costeiras e avançaram para o interior até serem contidos pelos egípcios. Então, os filisteus se estabeleceram na região de Gaza e introduziram uma tecnologia mais avançada do ferro.

Sinaítas e Antigos Árabes do Norte: entre a Península do Sinai, deserto do Negebe, Transjordânia, sul da Síria e norte da Arábia, continuaram a explorar minas de cobre e servir de intermediários nas caravanas do deserto. Desses diversos povos – alguns deles mencionados na Bíblia como midianitas, amalequitas, edomitas, moabitas, amonitas, quedaritas e temanitas – restaram registros epigráficos em rochas e vários sítios arqueológicos ainda pouco estudados. Com agricultura de oásis e pastoralismo, integraram a costa do Levante com outras regiões da Arábia e da Mesopotâmia. Há evidências que tinham uma literatura sapiencial e o culto a Yahweh.

Religião e literatura

A religião sírio-cananeia era centrada em um concílio divino com vários deuses que viviam em montanhas sagradas. No topo da hierarquia divina estava El e sua consorte. No próximo nível estavam os deuses com domínio sobre certas áreas e cada cidade tinha seus deuses patronos, normalmente com o título de Baal e acompanhado de uma deusa-consorte, normalmente Asserá ou Anat. Uma classe de deuses menores serviam seus superiores e no último estrato estavam os mensageiros (mlk) que intermediavam os deuses e os homens. Os papéis, representações, atributos e personalidades dos deuses variavam conforme o tempo e região.

Na cosmologia, havia um embate cósmico entre forças do bem e da ordem contra o mal e o caos. Havia três domínios: os dos deuses (os céus), o dos viventes (a superfície terrena) e o dos mortos (o she’ol). O ser humano possuía um componente imaterial (nefesh) que continuava sua existência no domínio dos mortos (Mut) e, às vezes, eram invocados para conselhos. Diferente dos egípcios, os cananeus não criam em alguma espécie de juízo pós-morte e esse lugar dos mortos não era nem um inferno com punições nem um paraíso para viver em companhia divina. Nesse politeísmo fluído, havia um henoteísmo, ou seja, a preferência do culto a certos deuses por uma cidade ou grupo nômade.

Nas cidades haviam templos (cúbicos e apertados) e nos campos lugares altos com altares nos quais oferendas com sacrifícios de animais eram queimados. No geral, seguiam o plano arquitetônico de “templos in antis”, com colunas frontais. A religião popular realizava rituais em lugares-altos onde havia altares e postes de madeira ou pedra. Ofertas votivas e oblações com cânticos de exaltação predominavam (pouco registro há de orações ou súplicas). Entre os agricultores havia três festivais: início das colheitas e nascimento dos animais na primavera, conclusão da colheita dos cereais no final do verão e a festa outonal da colheita das frutas. Embora sacrifícios humanos, incluindo de crianças, sejam mencionados na Bíblia e por autores clássicos, os poucos vestígios arqueológicos, como o Tofete de Cartago, indicam que era uma prática rara e, provavelmente, ocorrida somente em momentos de anomia. Outra prática mal interpretada, a de hierodulia ou prostituição cultual (qadesh e qadesha) também foi desconfirmada pelas análises recentes de fontes arqueológicas e literárias, sendo esses meramente designações dos servos dos templos.

A maior parte dos registros escritos dessas civilizações são textos comerciais e burocráticos, bem como registros epigramáticos curtos em superfícies duras. Contudo, há algumas obras de relevo literário.

De Ugarit restaram cerca de cinquenta textos com variações literárias e poemas épicos. São agrupados em míticos quando se referem aos deuses, como o Ciclo de Baal e as lendas, quando se trata de pessoas, como a Lenda de Keret, Lenda de Danel e Aqhat.

Na Idade do Ferro a escrita fenícia ou paleo-hebraica popularizou-se, especialmente a partir do século VIII d.C. A padronização dos tipos e dos estilos sugerem a existência de escolas escribais, mas nada tão institucionalizado como as edubas mesopotâmicas. Os materiais utilizados para a escrita eram certamente papiros e couros dos quais nada sobreviveram, bem como ôstracas e amuletos. Da Transjordânia restou na parede de uma habitação A visão de Balaão, um profeta citado no Pentateuco. Em vários lugares, uma lenda posterior, já em aramaico imperial, A estória de Aḥiqar, foi popular, pois sobreviveu em diferentes versões fragmentárias nos períodos persa e helenista em povos diversos.

Elementos do imaginário sírio-cananeu permeiam as narrativas bíblicas, sobretudo das Escrituras Hebraica. Embora boa parte da literatura bíblica tenha atingido sua forma canônica a partir do exílio Babilônico, vários escritos bíblicos possuem conteúdos mais antigos. Com grande probabilidade um corpus oral do ciclo dos patriarcas, da Tradição do Êxodo, dos provérbios, de vários salmos e das denunciações de muitos profetas (principalmente Amós, Oseias, o primeiro Isaías, Naum) tenham sido fixados em texto escrito antes do ano 600 a.C. (Schniedewind, 2011). Assim, temos, ricas porém fragmentárias alusões bíblicas que contribuem para se entender a literatura, a cultura e a civilização sírio-cananeia.

 

Legado

As conquistas dos estados sírio-cananeus pelos assírios e babilônios entre os séculos VIII ao V ocorreram sob uma nova política. Ao invés de simplesmente destruir toda a cidade e escravizar sua população ou impor um tratado de vassalagem, os assírios e babilônios passaram a deportar as populações e reassentá-las em outras regiões. A miscigenação entre os povos era estimulada e os povos subjugados ficavam sujeitos às tributações e à adoção de costumes mesopotâmicos. Seria o fim de uma civilização sírio-cananeia propriamente dita, mas com vários legados.

Uma das civilizações com as mais antigas cidades em contínua habitação seria ocupada sucessivamente por persas, gregos, romanos, árabes e turcos. Entretanto, legou e realizou grandes trocas culturais. Hoje podemos pensar nas práticas comerciais, na difusão do vidro e da viticultura, na culinária chamada sírio-libanesa ou mediterrânea, o culto ao deus El e a difusão da escrita alfabética como traços duradouros dessa civilização.


Fontes Bibliográficas

O ANET de Pritchard (1969) e o COS de Hallo e Younger (2002) são as obras-padrão para a publicação de textos relevantes à literatura bíblica. Dietrich et al. (1995) publicam o catálogo-padrão dos textos ugaríticos (KTU). O Kanaanäische und Aramäische Inschriften (KAI) é a compilação padronizada dos textos nas línguas semíticas do noroeste, exceto a Bíblia.

Poucas fontes da antiguidade clássica sobrevivem, como Luciano de Samósata, De Dea Syria. Os fragmentos de Filo Herênio de Biblos. História da Fenícia, contém, por sua vez, fragmentos de Sanconíaton de Beirute. Heródoto com suas Histórias e a Geografia de Estrabo são outras fontes valiosas se usadas criticamente.

Sobre a pré-história da região sírio-cananeia, consulte Mithen (2005) e Huehnergard (2000). Moura (2012) providencia um panorama de Ugarit. Ahlström (1993), Noll (2001, 2007), Finkelstein (1996), Nakhai (2001), Killebrew (2019) e Greener (2019) retratam essas religiões e sociedades na Idade do Bronze, como faz Ramazzina (2012) com a Fenícia na Idade do Ferro. Sobre os fenícios Doak e López-Ruiz (2019) fornecem um panorama. Quase nada há de trabalhos acadêmicos que sintetizam a parte sul dessa civilização, do Sinai ao norte da Arábia, mas Ahlström (1993) Smith (2002) são um ponto de partida enquanto Crowell (2021) oferece um panorama do estado-da-arte sobretudo sobre Edom. Schniedewind (2011) apresenta a função do mensageiro, dos grupos escribais e da escrita de cartas na emergência dessa literatura, especialmente a bíblica.

 

Mais Referências:

AHLSTRÖM, Gösta Werner. The history of ancient Palestine. Fortress Press, 1993.

CROWELL, Brad. Edom at the Edge of Empire: A Social and Political History. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2021.

DIETRICH, Manfried; LORETZ, Oswald; SANMARTIN, Joaquín. Keilschrift Texte aus Ugarit (KTU). Münster: Ugarit-Verlag, 1995.

DOAK, Brian R.; LÓPEZ-RUIZ, Carolina. The Oxford Handbook of the Phoenician and Punic Mediterranean. Oxford: Oxford Handbooks, 2019.

DONNER, Herbert; ROLLING, Wolfgang. Kanaanäische und aramäische Inschriften. Vol. 1. Otto Harrassowitz, 2002.

FINKELSTEIN, Israel. 1996. The Territorial-Political System of Canaan in the Late Bronze Age. Ugarit-Forschungen 28: 221–55.

GREENER, Aaron. “Archaeology and Religion in Late Bronze Age Canaan.” Religions 10.4 (2019): 258. https://doi.org/10.3390/rel10040258

HALLO, William W.; YOUNGER K. Lawson. The Context of Scripture. (COS) 3 volumes. Leiden: Brill, 1997-2002.

HUEHNERGARD, John. “Proto-Semitic Language and Culture”. The American Heritage Dictionary of the English Language. BOSTON: Houghton Mifflin, 2000.

KILLEBREW, Ann E. “Canaanite roots, proto-Phoenicia, and the early Phoenician Period. Ca. 1300-1000 BCE.” Brian R. Doak; Carolina López-Ruiz (Eds.) Oxford Handbook of the Phoenician and Punic Mediterranean. Oxford: OUP, 2019, pp. 39-55. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780190499341.013.4

MITHEN, Steven. Depois do gelo, uma história humana global, 20.000 – 5.000 a.C. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

MOURA, Rogério Lima de.  O concílio dos deuses no salmo 82 e na literatura ugarítica. 2012. Dissertação de mestrado em  Ciências Sociais e Religião. Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012. http://tede.metodista.br/jspui/handle/tede/246

NAKHAI, Beth Alpert. Archaeology and the Religions of Canaan and Israel. American Schools of Oriental Research, 2001.

NOLL, Kurt Lesher. Canaan and Israel in Antiquity: An Introduction. Londres: Sheffield Academic Press, 2001.

NOLL, Kurt Lesher. Canaanite Religion. Religion Compass 1/1 (2007): 61–92.

PRITCHARD, James B.  (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. (ANET) Princeton: Princeton University Press, 1969.

RAMAZZINA, Adriana A. Organização do Espaço e Território na Fenícia na Idade do Ferro: Cidades e Necrópoles. Mare Nostrum,  v. 3, n. 3, p. 157-174, 2012. DOI: 10.11606/issn.2177-4218.v3i3p157-174.  

SCHNIEDEWIND, William M. Como a Bíblia tornou-se um livro. A textualização no Antigo Israel. São Paulo: Loyola, 2011.

SMITH, Mark S. The Early History of God: Yahweh and Other Deities in Ancient Israel. Grand Rapids: Eerdmans, 2002.

 

 

O FESTIM DIVINO DE EL

 

“O festim divino de El” (tabuleta 19.CAT1.114) é um poema bastante curioso, porque, apesar da linguagem cujas fórmulas e epítetos remetem à épica e à poesia mais solene, retrata o venerável pai dos deuses numa situação, digamos, comprometedora (ainda mais se pensarmos na relação El-YHWH): El prepara um banquete (um churrasco, a bem dizer, cena comum da épica da região), se farta de carne (servida por Yarikh, deus da lua e aparentemente um bom churrasqueiro) e vinho e talvez sexo (ah, essas lacunas do texto), depois volta cambaleante para casa, escorado por divindades menores, desmaia e dorme sobre os próprios excrementos. Athtartu (Asherah) e Anat, uma deusa adolescente que aparece também no ciclo de Baal, então vão buscar uma cura para a sua ressaca, que envolve uma planta desconhecida chamada de pqq (lembrando que o ugarítico, como o hebraico, só marca as consoantes, então, ppq poderia ser paqaqa, paqaqe, paqeqe, etc, etc), que teria essas capacidades milagrosas. Infelizmente, apesar de termos ainda uma quantidade substancial de texto, a tabuleta está danificada e com lacunas, atiçando eternamente a nossa curiosidade sobre o que mais teria nesse poema, que já é por si só lacônico e parece deixar o melhor para a imaginação. Obviamente, eu o selecionei para postar aqui hoje não só por causa do clima generalizado de ressaca de fim de ano (apesar de que isso influenciou também, é claro), mas por este ser um desses raros poemas de escopo menor – se haveria uma tradição de poesia mítica cômica na região, desconhecemos – em que a representação dos deuses é muito próxima, desbragadamente próxima, do humano, e, por isso, dotada talvez de maior curiosidade e interesse imediato para nós do que as narrativas sobre grandes reis e suas linhagens.

 

O festim divino de El


El abate a caça em sua morada,

Mata as bestas em seu palácio,

Aponta aos deuses os cortes da carne

 

Os deuses comem e bebem

Bebem do vinho até que baste,

Da vindima até que fiquem bêbados.

 

Yarikh grelha o lombo como um [   ].

Agarra a sobrecoxa sob as mesas.

 

Para o deus que conhece,

Grelha um banquete para que se farte;

Para os deuses que desconhece,

Dá pauladas sob a mesa.

 

Ele se aproxima de Athtartu e Anat,

Athtartu lhe grelha um filé,

Anat assa uma costela.

 

O porteiro da morada de El o censura,

Que não grelhe filé para um cão,

Que não asse costela para um viralata.

Ele censura a El, seu pai, também.

 

El se senta…

El se assenta ao bacanal.

 

El bebe do vinho até que baste,

Da vindima até que fique bêbado.

 

El vai cambaleante até sua morada,

Tropeçando adentra seu pátio.

 

Thukamuna e Shunama o carregam,

Habayu então esbraveja com ele,

O dos dois chifres e um rabo.

 

Ele escorrega em seu esterco e urina,

El cai como um morto

El como os que descem à Terra.

 

Athtartu e Anat seguem para uma caçada

 

Athtartu e Anat…

E com elas trouxeram…

Como se sara quando se rejuvenesce.

 

Sobre seu cenho se deve pousar:

– pelos de cão

– a copa da planta pqq e sua haste

Misturar com o sumo de azeite virgem.

 

 

 

El’s divine feast

 

El slaughers game in his house,

Butchers beasts in his palace,

Bids gods to the cuts of beef.

 

The gods eat and drink,

Drink wine till sated,

Vintage till inebriated.

 

Yarikh grills the haunch like a [    ].

Grabs the hind-quarter beneath the tables.

 

As for the god whom he knows,

He grills fare for him to feast;

As for the god he does not know,

He strikes with sticks beneath the table.

 

He nears Athtartu and Anat,

Athtartu grills a steak for him,

Anat roasts a rack of ribs.

 

The porter of El’s house chides them,

Not to grill a steak for a dog,

Not to roast a rib for a cur.

He chides El, his father, too.

 

El sits…

El settles into his bacchanal.

 

El drinks wine till sated,

Vintage till inebriated.

 

El staggers into his house,

Stumbles in to his court.

 

Thukamuna and Shumana carry him.

Habayu then berates him,

He of two horns and a tail.

 

He slips into his dung and urine,

El collapses like one dead

El like those who descend to Earth.

 

Athtartu and Anat march off to hunt

 

Athtartu and Anat…

And with them they brought back…

As when one heals to return to youth.

 

On his brow one should put:

– hairs of a dog

– the top of a pqq-plant and its stem

Mix it with the juice of virgin oil.

 

(poema ugarítico anônimo, tradução de Adriano Scandolara sobre a tradução inglesa de Theodore J. Lewis)

 

A CIDADE DE UGARIT

 




Ugarit foi uma cidade portuária do Oriente Próximo localizada nos arredores de onde hoje se situa Ras Shamra, no norte da Síria, perto do monte Hérmon e da ilha de Chipre. Ela foi destruída por volta do final da Era do Bronze e, num dos grandes achados arqueológicos do século XX (ainda mais impressionante pelo fato de ter ocorrido por completo acidente), só veio a ser redescoberta em 1928. Situada numa posição excelente para o comércio, num ponto de encontro entre quase todos os povos da região, Ugarit floresceu cultural e financeiramente, tornando-se um dos grandes centros cosmopolitas do mundo antigo.

A cidade tinha o seu próprio idioma, o ugarítico, uma língua semítica cananeia, parente do fenício, do aramaico e do hebraico. Diferente dessas línguas, porém, o ugarítico não utilizava um sistema de escrita derivado do fenício. O hebraico, por exemplo, utilizava um abjad (esse tipo de alfabeto comum no Oriente Próximo e Médio que, diferente dos alfabetos completos, não marca as vogais ou as marca só com diacríticos) descendente do fenício, o chamado alfabeto paleo-hebraico, até cerca do século V a.C., quando foi substituído por um alfabeto diferente derivado do aramaico – só os samaritanos, porém, que são um outro povo semítico que disputa com os judeus o título de herdeiros da tradição israelita e que hoje são uma minoria, mantiveram o paleo-hebraico. Já o ugarítico desenvolveu o seu próprio sistema de escrita com base no cuneiforme. O cuneiforme, como se sabe, é o sistema que utiliza uma cunha para traçar os caracteres numa tabuleta de argila e que, até onde se tem registro, foi inventado e utilizado pelos sumérios desde pelo menos por volta do terceiro milênio antes de Cristo. Nos diz a assirióloga Marie-Louise Thomsen, em seu The Sumerian Language: an Introduction, que a escrita do sumério se desenvolveu não como uma forma de representação da fala, mas como um auxílio mnemônico, o que é um motivo pelo qual as tabuletas sumérias mais antigas são de uma extrema dificuldade para serem decifradas (não por acaso, os textos que formam corpus que a autora usa para tratar da gramática da língua datam de entre 2600 e 900 a.C.). Com o tempo, a escrita foi se tornando mais complexa e passou a representar, mais ou menos, frases inteiras, o que se tornou muito importante para a sobrevivência da língua por escrito do período neossumério (2200 a 2000 a.C.) em diante, em que ela deixou de ser falada na mesopotâmia, mas continuou a ser utilizada em textos de natureza burocrática, literária e religiosa.

A unidade do cuneiforme sumério era um grafema chamado de logograma: AN, por exemplo, era o símbolo para “deus”, “acima” ou “céu”. Combinado com A (“água”… mas também “sêmen”), forma a palavra “chuva” (na imagem ao lado), A.AN, transliterada “šeĝ” (“sheg”, mas a pronúncia exata é desconhecida e incognoscível). É bem complicado e não convém agora entrar nos pormenores, que envolvem ainda questões de homofonia e variações e tudo o mais, mas é interessante apontar que esse sistema foi repassado aos acádios, um povo semita como os ugaríticos (diferente dos sumérios, que não eram semitas e cuja língua é considerada uma língua isolada), e sua cultura e língua se desenvolveram lado a lado com a suméria – diz-se dos dois que linguisticamente formam um Sprachbund, de modo que é difícil dizer quais palavras e construções (incluindo a ordem das palavras na frase) do sumério são originalmente sumérias e quais são empréstimos do acádio, e vice-versa. Uma narrativa como o Épico de Gilgamesh, tal como o reconhecemos hoje, parte de fontes acádias, mas a mitologia em torno da figura de Gilgameš, rei de Uruk, tem origem numa tradição anterior de tabuletas sumérias.

Acontece, porém, que, por conta de questões fonológicas, essa forma de escrita não era bem adequada ao acádio (e isso talvez tenha pesado na hora de manter o sumério como língua burocrática, mesmo após o acádio se tornar a língua oficial das sucessões de impérios babilônicos). Os escribas de Ugarit, então, resolveram o problema desenvolvendo o seu próximo alfabeto: a escrita do ugarítico é cuneiforme, visto que também se faz com uma cunha sobre uma tabuleta de argila, mas, diferente da do sumério e do acádio, ela consiste num abjad com uma letra para cada consoante (com algumas duplicadas, como ocorre também com o hebraico). Esse sistema também foi utilizado para escrever textos em acádio, tal como atestam alguns documentos escavados em Ugarit.

Ugarit tinha ainda sua própria religião e mitologia, e a sua descoberta serviu para iluminar algumas questões importantes para os estudos bíblicos. A religião ugarítica, ainda que tenha alguns deuses menores, se concentra basicamente sobre o casal principal de divindades, El, pai dos deuses, e sua esposa Asherah, a Rainha dos Céus. O casal tem três filhos, Hadad (também chamado Baal, “Senhor”), Yamm e Mot. Hadad, deus das tempestades, governa sobre os céus, Yamm, sobre os mares, e Mot, sobre o mundo dos mortos, numa relação que parece muito próxima da espelhada pelos deuses gregos Zeus, Posêidon e Hades, respectivamente (já Crono, pai de Zeus, não seria um bom equivalente para El, e o paralelo meio que termina aí). El, que é o nome próprio da divindade, mas também um termo genérico para “deus”, provavelmente deriva de Ilu, termo acádio para “deus” que traduz o An ou Anu sumério, e o nome, como se sabe, é usado com frequência na Bíblia para se referir a YHWH, o deus dos israelitas, presente tanto em construções como “El Shaddai” (“Deus Poderoso”) quanto em palavras como “Israel” (“o que lutou com Deus”). De fato, nas últimas décadas, diversos autores, como Raphael Patai e Frank Moore Cross, têm traçado paralelos entre El e YHWH, e é muito provável que os dois fossem adorados como a mesma divindade na região, com frequência junto de Asherah, que, se a hipótese de Patai estiver correta, acabou eliminada da Bíblia e dos cultos após o Primeiro Templo ser derrubado e a elite religiosa israelita fechar o cerco contra o politeísmo. Há cartas em aramaico da região, datando de pelo menos 500 a.C., em que os autores usam certas expressões equivalentes a um “deus te abençoe” que indicam o culto a YHWH lado a lado com outros deuses, como Ptah, Khnum e Asherah (mais sobre isso no livro Ancient Aramaic and Hebrew Letters, editado por James M. Lindenberger & Kent Harold Richards). Há outros resquícios de referências a deuses pagãos ainda no hebraico que podem ser encontrados inclusive no texto biblico: Shamash/Utu era o deus acádio/sumério do sol, e “shemesh” (שמש) é “sol” em hebraico. Mot (m.t.), o deus do submundo, lembra “mawet” (מות), nome utilizado para personificação da morte no texto bíblico, ao passo que “met” (מת), sem o vav no meio (o caractere hebraico para o som de “v”, que é uma mater lectionis e também funciona para marcar as vogais “o” e “u”), significa “morto”. E assim por diante.

Muitos textos oficiais (a principal função da escrita, em sua origem, era provavelmente burocrática) e alguns literários foram recuperados em Ugarit. Os mais longos de que se tem notícia foram analisados e traduzidos no volume Ugaritic Narrative Poetry, organizado por Simon B. Parker (tradutores: Mark S. Smith, Simon B. Parker, Edward L. Greenstein, Theodore J. Lewis e David Marcus), que são os épicos Kirta, Aqhat e Baal. O volume, de que me vali para fazer este post, também acompanha 10 outros poemas mais curtos, dos quais um eu selecionei para traduzir para o português a partir da tradução inglesa de Theodore J. Lewis.