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domingo, 18 de fevereiro de 2024

O FESTIM DIVINO DE EL

 

“O festim divino de El” (tabuleta 19.CAT1.114) é um poema bastante curioso, porque, apesar da linguagem cujas fórmulas e epítetos remetem à épica e à poesia mais solene, retrata o venerável pai dos deuses numa situação, digamos, comprometedora (ainda mais se pensarmos na relação El-YHWH): El prepara um banquete (um churrasco, a bem dizer, cena comum da épica da região), se farta de carne (servida por Yarikh, deus da lua e aparentemente um bom churrasqueiro) e vinho e talvez sexo (ah, essas lacunas do texto), depois volta cambaleante para casa, escorado por divindades menores, desmaia e dorme sobre os próprios excrementos. Athtartu (Asherah) e Anat, uma deusa adolescente que aparece também no ciclo de Baal, então vão buscar uma cura para a sua ressaca, que envolve uma planta desconhecida chamada de pqq (lembrando que o ugarítico, como o hebraico, só marca as consoantes, então, ppq poderia ser paqaqa, paqaqe, paqeqe, etc, etc), que teria essas capacidades milagrosas. Infelizmente, apesar de termos ainda uma quantidade substancial de texto, a tabuleta está danificada e com lacunas, atiçando eternamente a nossa curiosidade sobre o que mais teria nesse poema, que já é por si só lacônico e parece deixar o melhor para a imaginação. Obviamente, eu o selecionei para postar aqui hoje não só por causa do clima generalizado de ressaca de fim de ano (apesar de que isso influenciou também, é claro), mas por este ser um desses raros poemas de escopo menor – se haveria uma tradição de poesia mítica cômica na região, desconhecemos – em que a representação dos deuses é muito próxima, desbragadamente próxima, do humano, e, por isso, dotada talvez de maior curiosidade e interesse imediato para nós do que as narrativas sobre grandes reis e suas linhagens.

 

O festim divino de El


El abate a caça em sua morada,

Mata as bestas em seu palácio,

Aponta aos deuses os cortes da carne

 

Os deuses comem e bebem

Bebem do vinho até que baste,

Da vindima até que fiquem bêbados.

 

Yarikh grelha o lombo como um [   ].

Agarra a sobrecoxa sob as mesas.

 

Para o deus que conhece,

Grelha um banquete para que se farte;

Para os deuses que desconhece,

Dá pauladas sob a mesa.

 

Ele se aproxima de Athtartu e Anat,

Athtartu lhe grelha um filé,

Anat assa uma costela.

 

O porteiro da morada de El o censura,

Que não grelhe filé para um cão,

Que não asse costela para um viralata.

Ele censura a El, seu pai, também.

 

El se senta…

El se assenta ao bacanal.

 

El bebe do vinho até que baste,

Da vindima até que fique bêbado.

 

El vai cambaleante até sua morada,

Tropeçando adentra seu pátio.

 

Thukamuna e Shunama o carregam,

Habayu então esbraveja com ele,

O dos dois chifres e um rabo.

 

Ele escorrega em seu esterco e urina,

El cai como um morto

El como os que descem à Terra.

 

Athtartu e Anat seguem para uma caçada

 

Athtartu e Anat…

E com elas trouxeram…

Como se sara quando se rejuvenesce.

 

Sobre seu cenho se deve pousar:

– pelos de cão

– a copa da planta pqq e sua haste

Misturar com o sumo de azeite virgem.

 

 

 

El’s divine feast

 

El slaughers game in his house,

Butchers beasts in his palace,

Bids gods to the cuts of beef.

 

The gods eat and drink,

Drink wine till sated,

Vintage till inebriated.

 

Yarikh grills the haunch like a [    ].

Grabs the hind-quarter beneath the tables.

 

As for the god whom he knows,

He grills fare for him to feast;

As for the god he does not know,

He strikes with sticks beneath the table.

 

He nears Athtartu and Anat,

Athtartu grills a steak for him,

Anat roasts a rack of ribs.

 

The porter of El’s house chides them,

Not to grill a steak for a dog,

Not to roast a rib for a cur.

He chides El, his father, too.

 

El sits…

El settles into his bacchanal.

 

El drinks wine till sated,

Vintage till inebriated.

 

El staggers into his house,

Stumbles in to his court.

 

Thukamuna and Shumana carry him.

Habayu then berates him,

He of two horns and a tail.

 

He slips into his dung and urine,

El collapses like one dead

El like those who descend to Earth.

 

Athtartu and Anat march off to hunt

 

Athtartu and Anat…

And with them they brought back…

As when one heals to return to youth.

 

On his brow one should put:

– hairs of a dog

– the top of a pqq-plant and its stem

Mix it with the juice of virgin oil.

 

(poema ugarítico anônimo, tradução de Adriano Scandolara sobre a tradução inglesa de Theodore J. Lewis)

 

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