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domingo, 18 de fevereiro de 2024

A CIVILIZAÇÃO SÍRIO-CANANEIA

 



Entre os anos 2200 e 600 a.C., em uma encruzilhada entre povos poderosos surgiu uma civilização marginal, porém com legados duradouros na língua, na escrita alfabética, na religião e na difusão de vários elementos culturais, do vinho ao vidro.

A civilização do Levante ou cananita não se restringe a uma só etnia. Reúne povos diversos em um território com traços sociais e culturais semelhantes. O Levante ou Síria-Palestina, a região onde o Mediterrâneo oriental liga a Anatólia ao Egito, teve a benção e a maldição de ser o ponto de ligação dos três continentes. Se a difusão das inovações da África e da Mesopotâmia chegavam cedo, cedo também chegavam os invasores. Ainda sim, floresceu uma das mais fascinantes civilizações.

Tempos imemoráveis: a pré-história

A primeira cultura arqueológica distinta a emergir na região foi a Natufiana (13050-7750 a.C.). Essa cultura tecnológica do mesolítico adotou uma vida semi-sedentária, abrigando-se em cavernas e acampamentos. Os natufianos colhiam grãos selvagens, produziam pão (e cerveja!) e caçavam gazelas. Domesticavam cachorros e demonstravam hierarquização social em seus cemitérios. Essa cultura recebe o nome de seu principal sítio arqueológico, Natuf, onde está a Caverna de Shuqba, a 28 km a noroeste de Jerusalém, nas montanhas da Judeia. Na caverna de Ain Sakhri (Belém) foi encontrada uma das mais antigas esculturas representando um casal, os Amantes de Ain Sakhri (9000 a.C.).

Por volta de 8800 a.C. aparecem vilas permanentes como Biblos, Gilgal e Tell es-Sultan (Jericó). As ferramentas de pedra mais elaboradas do neolítico inicial (pré-cerâmico) permitiram a agricultura de aveia e trigo. Em Tell es-Sultan construíram uma torre com finalidade sem explicações e um muro ao redor da cidade. Em Tell Aswad, no sul da Síria, passou-se a construir casas de adobe, utilizar lâminas de obsidiana, moldar figuras em argila, produzir cestos e a domesticar animais.     

 

A emergência da civilização

Por volta do ano 4 000 a.C. a desertificação do Saara e da Arábia intensificou a vida sedentária em vilas e nascentes cidades no Egito e Mesopotâmia. Inicia-se o uso da metalurgia (o cobre) e do comércio.

Esse período (especialmente entre 3750 e 2800 a.C.) coincide com a aparição dos povos falando dialetos proto-semíticos, um ramo da família linguística afro-asiática. Pela linguística comparativa é possível inferir a sociedade e cultura desses povos. Certamente era uma sociedade patriarcal, com palavras distintas para “pai” (*’ab-) e “mãe” (*’imm-), mas “filha” (*bint-) é uma variação de filho (*bn). Há palavras comuns para “chefe, rei” (*mlk) e “senhor, dono, marido” (*b’l) e “serva” (*’mt), inferindo que homens prisioneiros de guerra seriam executados. Apesar de não haver uma raiz comum para o termo “religião”, há vários outros para “sacrifício” (*b), “unção” (*m), “proibição” (*rm), “santificação” (*qd) e “deus” (*il-). Termos sobre agricultura e pastoralismo abundam. Sabemos assim que alguns proto-semitas viviam em rotas pastoralistas semi-nômades enquanto outros moravam em aldeamentos e cidades. Tecnologicamente, suas habitações deveriam possuir portas, cadeiras, camas, poços e fundiam metais, embora somente o termo prata seja reconstituído no proto-semítico.

Na Mesopotâmia, o povo sumério funda cidades-estados nas quais o templo ocupa as funções de redistribuição e de mercado. No Egito começa o processo de unificação de reinos locais (nomos) ao longo do vale do Nilo. Aproximadamente na Idade do Bronze, a escrita emerge, primeiro como controle contábil, depois para registros de textos mais longos, quase que simultaneamente na Mesopotâmia (escrita cuneiforme) e no Egito (escrita hieroglífica). A região sírio-palestina ficaria constantemente influenciada por essas duas civilizações.

A área do Levante — com cerca de 350 mil km2, algo próximo à área do estado do Mato Grosso do Sul — se beneficiou de sua posição estratégica como conector de civilizações. No entanto, sua geografia também foi sua maldição. Essa região seria a mais belicosa de todo o mundo até hoje.


Sujeição aos estados e Impérios Arcaicos do 3º milênio

Nos meados do terceiro milênio, populações semitas se misturaram aos povos da Mesopotâmia. A população dos amorreus (amoritas) semitas do norte da Mesopotâmia cresce e passam a viver na Síria, Palestina e sul da Mesopotâmia. Os amoritas fundam as cidades de Mari, Yamhad, Ebla e Babilônia e, após o colapso das cidades-estados sumérias, emergiram no Império de Acade (c2400-2150 a.C). Acade seria a primeira civilização semítica na região e o primeiro império com alcance além das fronteiras locais, incluindo a região de Canaã.

Na Alta Mesopotâmia síria a cidade de Ebla (c2500-2250 a.C) manteve complexas atividades comerciais, como atestam os contratos, cartas e literatura nessa língua aparentada do acadiano. Em sua religião aparecem nomes comuns do panteão cananeu como Dagon, Shamash, Reshef, Hadad, Ashtarte, Moloch, Koshar, Asherah e Qemosh. Há registros de necromancia (yid’oni) e da crença de um lugar dos mortos (sheol).


Cultura distintivamente sírio-cananeia

O enfraquecimento das potências regionais no segundo milênio deram espaço para Canaã ser ocupada por vários povos, como os hurritas (1900-1300 a.C.), os nômades semitas habiru (1800-1450 a.C.) e mesmo povos indoeuropeus como os hititas (heteus bíblicos?). Entre os anos 2200 e 1800 a.C. foi o período quando uma cultura distintivamente sírio-cananeia se formaria no Levante.

O comércio de longa distância é indicado pelo misterioso silabário de Biblos. Embora haja poucos testemunhos dessa escrita, surpreendem que sejam encontrados em Megido, no Delta do Nilo e até em Rieti e Trieste, na Itália. Essa escrita ainda não decifrada da Idade do Bronze (1800-1500 a.C.) atesta uma vívida integração de mundos distantes que somente seria documentada séculos mais tarde nas cartas de Amarna. Por volta de 1600, provavelmente foram os mercadores fenício-cananeus que propagaram a viticultura pela bacia do Mediterrâneo.

Entre 2200 e 1800 a.C., na região da Síria-Palestina um conjunto de dialetos semíticos do noroeste se firmou. A partir desse contínuo linguístico emergeriam o ugarítico, o fenício, o hebraico, o moabita, o aramaico antigo e outras variedades pouco atestadas. Embora somente no próximo milênio a escrita se tornaria mais popular, há uso das escritas e línguas egípcia e acadiana. Formas simplificadas dos hieróglifos consonantais aparecem em inscrições proto-sinaíticas e proto-canaanitas em Sarabit al-Khadim, Wadi el-Hol, Siquém, Gezer, Tell el-Ḥesī, Tell al-ʿAjūl, Beth-Shemesh, Megido, Tell Rehov, Tell Beit Mirsim e Láquis. (c.1600-1500). Na Idade do Ferro essa escrita evoluiria de um sistema acrofonético para uma escrita fonética pura, nas quais os signos representam sons. Todavia, não eram registradas as vogais, razão para ser chamada mais apropriadamente de escrita abjad que escrita alfabética.

Dessa época aparece a primeira menção inequívoca a Canaã. A estátua do Rei Idrimi, do século XVI a.C., conta como ele e sua família fugiram de Yamhad (Alepo). Por um tempo, Idrimi se refugiou em Canaã, vivendo entre guerreiros hapiru por sete anos. Idrimi fez uma aliança com um rei das hordas nômades que lhe cedeu tropas para lutar contra os hititas. Idrimi conquistaria a cidade costeira síria de Alalakh, onde reinaria por 30 anos como vassalo dos hurritas.

A Civilização de Ugarit no 2º milênio

Em um caso isolado, em Ugarit, a escrita cuneiforme foi adaptada para a língua canaanita. Nessa cidade comercial estrategicamente localizada na costa norte da Síria floresceu entre 1800 e 1175 a.C. uma civilização cuja literatura nos alcançou. Há nos mitos e lendas ugaríticas menção do deus El, como senhor dos deuses e dos homens, bem como várias expressões poéticas paralelas a alguns poemas (Canção do Mar) e salmos bíblicos. Fora da cidade, o uso do ugarítico aparece em inscrições cuneiformes sendo encontradas mais ao sul, em Beth Shemesh, Taanach e Monte Tabor. Na faixa entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo, 97 textos cuneiformes foram encontrados dessa época, indicando um uso restrito da escrita, a qual seria limitada à administração pública.

No período de Amarna, Canaã aparece sujeita ao Egito e essa situação continuou até por volta da Estela de Merneptá (1207 a.C.). Há traços da presença de asiáticos semitas e cananeus no Egito como da presença de egípcios em Canaã e nos desertos ao sul. Nas tumbas e templos egípcios, os cananeus aparecem vassalos, geralmente vestidos com túnicas longas e faixas na cabeça, pagando tributo ao Egito. São escravos, soldados, mercadores de madeira, cobre, vinho e azeite. Desprezados, são representados como cães latindo e obedecendo às ordens de seus senhores egípcios.

Os pastoralistas semíticos permitiram o renascimento urbano. O excedente de lã, leite e carne sustentava a produção têxtil e alimentava uma população cada vez mais crescente nas aldeias e cidades. Ao contrário do que possa o termo inferir, os nômades pastoralistas não andavam a esmo, mas percorriam rotas acompanhando as estações em busca de melhores pastos.

Na crise da Idade do Bronze, a influência egípcia caiu consideravelmente. Um conto desse período, A jornada de Wen-Amon relata as dificuldades de um oficial egípcio para conseguir madeira com o rei de Biblos.

Berços de civilizações do 1º milênio

Na crise da Idade do Bronze (c.1200-1000 a.C.), os chamados povos do mar destruíram os estados hititas e Ugarit, ameaçaram a Mesopotâmia e o Egito (que fecharam em si, priorizando suas defesas internas).

Na Idade do Ferro (1200-500 a. C.), nos intervalos das guerras que mantinham o delicado equilíbrio entre Egito e Mesopotâmia, vários pequenos estados floresceram na região, aproveitando-se da localização estratégica para o comércio. Foi o apogeu, quando essa terra manou leite e mel. A agricultura floresceu e com ela o fábrico de vasos para armazenar azeite, grãos e vinho. O comércio com povos vizinhos trouxe prosperidade. Nessa época, populariza a casa de quatro cômodos, indicando um crescimento na densidade populacional.

A necessidade de registrar essas transações comerciais fez com que a escrita alfabética (abjad) popularizasse. A versão ocidental, ou fenícia, propagou-se pelo Mediterrâneo enquanto a variante oriental, o aramaico, propagou-se pela Ásia.

Fenícios

Hábeis navegadores e mercadores das costas do Líbano, fundaram colônias pelo Meditarrâneo, como a notória Cartago. Foram produtores e intermediários na produção de tinturas, têxteis, couros, madeira, especiarias, vidro, vinho, azeite e outros produtos. Sua escrita, adotada pelos gregos com sons vocálicos por volta de 800 d.C., seria a base para os alfabetos grego, latino e cirílico. Algumas palavras no português testemunham essa aventura comercial: mapa, saco, talha, malha, África e Málaga.

Arameus: do sul da Síria até as margens norte do Eufrates, uma série de pequenos estados dominavam as rotas de caravanas integrando a Mesopotâmia e a costa mediterrânea. Sua língua, o aramaico, atestada desde 850 a.C., seria a primeira língua-franca, usada desde o sul do Egito até a Ásia Central. Levada por mercadores e adotada como língua de trabalho dos impérios persa e helenísticos, essa escrita semítica seria propagada até a Índia e de lá, para o sudoeste asiático.

Hebreus: na região montanhosa entre o rio Jordão e o Deserto do Negebe, as ações de profetas transformaram um culto nacional na primeira religião monoteísta com pretensões universais.

Filisteus e povos do mar: provavelmente povos com origens nos Bálcãs e Anatólia (incluíndo indoeuropeus com origens na civilização micênica de Creta) passaram a aterrorizar (c. 1180) as regiões costeiras e avançaram para o interior até serem contidos pelos egípcios. Então, os filisteus se estabeleceram na região de Gaza e introduziram uma tecnologia mais avançada do ferro.

Sinaítas e Antigos Árabes do Norte: entre a Península do Sinai, deserto do Negebe, Transjordânia, sul da Síria e norte da Arábia, continuaram a explorar minas de cobre e servir de intermediários nas caravanas do deserto. Desses diversos povos – alguns deles mencionados na Bíblia como midianitas, amalequitas, edomitas, moabitas, amonitas, quedaritas e temanitas – restaram registros epigráficos em rochas e vários sítios arqueológicos ainda pouco estudados. Com agricultura de oásis e pastoralismo, integraram a costa do Levante com outras regiões da Arábia e da Mesopotâmia. Há evidências que tinham uma literatura sapiencial e o culto a Yahweh.

Religião e literatura

A religião sírio-cananeia era centrada em um concílio divino com vários deuses que viviam em montanhas sagradas. No topo da hierarquia divina estava El e sua consorte. No próximo nível estavam os deuses com domínio sobre certas áreas e cada cidade tinha seus deuses patronos, normalmente com o título de Baal e acompanhado de uma deusa-consorte, normalmente Asserá ou Anat. Uma classe de deuses menores serviam seus superiores e no último estrato estavam os mensageiros (mlk) que intermediavam os deuses e os homens. Os papéis, representações, atributos e personalidades dos deuses variavam conforme o tempo e região.

Na cosmologia, havia um embate cósmico entre forças do bem e da ordem contra o mal e o caos. Havia três domínios: os dos deuses (os céus), o dos viventes (a superfície terrena) e o dos mortos (o she’ol). O ser humano possuía um componente imaterial (nefesh) que continuava sua existência no domínio dos mortos (Mut) e, às vezes, eram invocados para conselhos. Diferente dos egípcios, os cananeus não criam em alguma espécie de juízo pós-morte e esse lugar dos mortos não era nem um inferno com punições nem um paraíso para viver em companhia divina. Nesse politeísmo fluído, havia um henoteísmo, ou seja, a preferência do culto a certos deuses por uma cidade ou grupo nômade.

Nas cidades haviam templos (cúbicos e apertados) e nos campos lugares altos com altares nos quais oferendas com sacrifícios de animais eram queimados. No geral, seguiam o plano arquitetônico de “templos in antis”, com colunas frontais. A religião popular realizava rituais em lugares-altos onde havia altares e postes de madeira ou pedra. Ofertas votivas e oblações com cânticos de exaltação predominavam (pouco registro há de orações ou súplicas). Entre os agricultores havia três festivais: início das colheitas e nascimento dos animais na primavera, conclusão da colheita dos cereais no final do verão e a festa outonal da colheita das frutas. Embora sacrifícios humanos, incluindo de crianças, sejam mencionados na Bíblia e por autores clássicos, os poucos vestígios arqueológicos, como o Tofete de Cartago, indicam que era uma prática rara e, provavelmente, ocorrida somente em momentos de anomia. Outra prática mal interpretada, a de hierodulia ou prostituição cultual (qadesh e qadesha) também foi desconfirmada pelas análises recentes de fontes arqueológicas e literárias, sendo esses meramente designações dos servos dos templos.

A maior parte dos registros escritos dessas civilizações são textos comerciais e burocráticos, bem como registros epigramáticos curtos em superfícies duras. Contudo, há algumas obras de relevo literário.

De Ugarit restaram cerca de cinquenta textos com variações literárias e poemas épicos. São agrupados em míticos quando se referem aos deuses, como o Ciclo de Baal e as lendas, quando se trata de pessoas, como a Lenda de Keret, Lenda de Danel e Aqhat.

Na Idade do Ferro a escrita fenícia ou paleo-hebraica popularizou-se, especialmente a partir do século VIII d.C. A padronização dos tipos e dos estilos sugerem a existência de escolas escribais, mas nada tão institucionalizado como as edubas mesopotâmicas. Os materiais utilizados para a escrita eram certamente papiros e couros dos quais nada sobreviveram, bem como ôstracas e amuletos. Da Transjordânia restou na parede de uma habitação A visão de Balaão, um profeta citado no Pentateuco. Em vários lugares, uma lenda posterior, já em aramaico imperial, A estória de Aḥiqar, foi popular, pois sobreviveu em diferentes versões fragmentárias nos períodos persa e helenista em povos diversos.

Elementos do imaginário sírio-cananeu permeiam as narrativas bíblicas, sobretudo das Escrituras Hebraica. Embora boa parte da literatura bíblica tenha atingido sua forma canônica a partir do exílio Babilônico, vários escritos bíblicos possuem conteúdos mais antigos. Com grande probabilidade um corpus oral do ciclo dos patriarcas, da Tradição do Êxodo, dos provérbios, de vários salmos e das denunciações de muitos profetas (principalmente Amós, Oseias, o primeiro Isaías, Naum) tenham sido fixados em texto escrito antes do ano 600 a.C. (Schniedewind, 2011). Assim, temos, ricas porém fragmentárias alusões bíblicas que contribuem para se entender a literatura, a cultura e a civilização sírio-cananeia.

 

Legado

As conquistas dos estados sírio-cananeus pelos assírios e babilônios entre os séculos VIII ao V ocorreram sob uma nova política. Ao invés de simplesmente destruir toda a cidade e escravizar sua população ou impor um tratado de vassalagem, os assírios e babilônios passaram a deportar as populações e reassentá-las em outras regiões. A miscigenação entre os povos era estimulada e os povos subjugados ficavam sujeitos às tributações e à adoção de costumes mesopotâmicos. Seria o fim de uma civilização sírio-cananeia propriamente dita, mas com vários legados.

Uma das civilizações com as mais antigas cidades em contínua habitação seria ocupada sucessivamente por persas, gregos, romanos, árabes e turcos. Entretanto, legou e realizou grandes trocas culturais. Hoje podemos pensar nas práticas comerciais, na difusão do vidro e da viticultura, na culinária chamada sírio-libanesa ou mediterrânea, o culto ao deus El e a difusão da escrita alfabética como traços duradouros dessa civilização.


Fontes Bibliográficas

O ANET de Pritchard (1969) e o COS de Hallo e Younger (2002) são as obras-padrão para a publicação de textos relevantes à literatura bíblica. Dietrich et al. (1995) publicam o catálogo-padrão dos textos ugaríticos (KTU). O Kanaanäische und Aramäische Inschriften (KAI) é a compilação padronizada dos textos nas línguas semíticas do noroeste, exceto a Bíblia.

Poucas fontes da antiguidade clássica sobrevivem, como Luciano de Samósata, De Dea Syria. Os fragmentos de Filo Herênio de Biblos. História da Fenícia, contém, por sua vez, fragmentos de Sanconíaton de Beirute. Heródoto com suas Histórias e a Geografia de Estrabo são outras fontes valiosas se usadas criticamente.

Sobre a pré-história da região sírio-cananeia, consulte Mithen (2005) e Huehnergard (2000). Moura (2012) providencia um panorama de Ugarit. Ahlström (1993), Noll (2001, 2007), Finkelstein (1996), Nakhai (2001), Killebrew (2019) e Greener (2019) retratam essas religiões e sociedades na Idade do Bronze, como faz Ramazzina (2012) com a Fenícia na Idade do Ferro. Sobre os fenícios Doak e López-Ruiz (2019) fornecem um panorama. Quase nada há de trabalhos acadêmicos que sintetizam a parte sul dessa civilização, do Sinai ao norte da Arábia, mas Ahlström (1993) Smith (2002) são um ponto de partida enquanto Crowell (2021) oferece um panorama do estado-da-arte sobretudo sobre Edom. Schniedewind (2011) apresenta a função do mensageiro, dos grupos escribais e da escrita de cartas na emergência dessa literatura, especialmente a bíblica.

 

Mais Referências:

AHLSTRÖM, Gösta Werner. The history of ancient Palestine. Fortress Press, 1993.

CROWELL, Brad. Edom at the Edge of Empire: A Social and Political History. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2021.

DIETRICH, Manfried; LORETZ, Oswald; SANMARTIN, Joaquín. Keilschrift Texte aus Ugarit (KTU). Münster: Ugarit-Verlag, 1995.

DOAK, Brian R.; LÓPEZ-RUIZ, Carolina. The Oxford Handbook of the Phoenician and Punic Mediterranean. Oxford: Oxford Handbooks, 2019.

DONNER, Herbert; ROLLING, Wolfgang. Kanaanäische und aramäische Inschriften. Vol. 1. Otto Harrassowitz, 2002.

FINKELSTEIN, Israel. 1996. The Territorial-Political System of Canaan in the Late Bronze Age. Ugarit-Forschungen 28: 221–55.

GREENER, Aaron. “Archaeology and Religion in Late Bronze Age Canaan.” Religions 10.4 (2019): 258. https://doi.org/10.3390/rel10040258

HALLO, William W.; YOUNGER K. Lawson. The Context of Scripture. (COS) 3 volumes. Leiden: Brill, 1997-2002.

HUEHNERGARD, John. “Proto-Semitic Language and Culture”. The American Heritage Dictionary of the English Language. BOSTON: Houghton Mifflin, 2000.

KILLEBREW, Ann E. “Canaanite roots, proto-Phoenicia, and the early Phoenician Period. Ca. 1300-1000 BCE.” Brian R. Doak; Carolina López-Ruiz (Eds.) Oxford Handbook of the Phoenician and Punic Mediterranean. Oxford: OUP, 2019, pp. 39-55. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780190499341.013.4

MITHEN, Steven. Depois do gelo, uma história humana global, 20.000 – 5.000 a.C. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

MOURA, Rogério Lima de.  O concílio dos deuses no salmo 82 e na literatura ugarítica. 2012. Dissertação de mestrado em  Ciências Sociais e Religião. Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012. http://tede.metodista.br/jspui/handle/tede/246

NAKHAI, Beth Alpert. Archaeology and the Religions of Canaan and Israel. American Schools of Oriental Research, 2001.

NOLL, Kurt Lesher. Canaan and Israel in Antiquity: An Introduction. Londres: Sheffield Academic Press, 2001.

NOLL, Kurt Lesher. Canaanite Religion. Religion Compass 1/1 (2007): 61–92.

PRITCHARD, James B.  (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. (ANET) Princeton: Princeton University Press, 1969.

RAMAZZINA, Adriana A. Organização do Espaço e Território na Fenícia na Idade do Ferro: Cidades e Necrópoles. Mare Nostrum,  v. 3, n. 3, p. 157-174, 2012. DOI: 10.11606/issn.2177-4218.v3i3p157-174.  

SCHNIEDEWIND, William M. Como a Bíblia tornou-se um livro. A textualização no Antigo Israel. São Paulo: Loyola, 2011.

SMITH, Mark S. The Early History of God: Yahweh and Other Deities in Ancient Israel. Grand Rapids: Eerdmans, 2002.

 

 

O FESTIM DIVINO DE EL

 

“O festim divino de El” (tabuleta 19.CAT1.114) é um poema bastante curioso, porque, apesar da linguagem cujas fórmulas e epítetos remetem à épica e à poesia mais solene, retrata o venerável pai dos deuses numa situação, digamos, comprometedora (ainda mais se pensarmos na relação El-YHWH): El prepara um banquete (um churrasco, a bem dizer, cena comum da épica da região), se farta de carne (servida por Yarikh, deus da lua e aparentemente um bom churrasqueiro) e vinho e talvez sexo (ah, essas lacunas do texto), depois volta cambaleante para casa, escorado por divindades menores, desmaia e dorme sobre os próprios excrementos. Athtartu (Asherah) e Anat, uma deusa adolescente que aparece também no ciclo de Baal, então vão buscar uma cura para a sua ressaca, que envolve uma planta desconhecida chamada de pqq (lembrando que o ugarítico, como o hebraico, só marca as consoantes, então, ppq poderia ser paqaqa, paqaqe, paqeqe, etc, etc), que teria essas capacidades milagrosas. Infelizmente, apesar de termos ainda uma quantidade substancial de texto, a tabuleta está danificada e com lacunas, atiçando eternamente a nossa curiosidade sobre o que mais teria nesse poema, que já é por si só lacônico e parece deixar o melhor para a imaginação. Obviamente, eu o selecionei para postar aqui hoje não só por causa do clima generalizado de ressaca de fim de ano (apesar de que isso influenciou também, é claro), mas por este ser um desses raros poemas de escopo menor – se haveria uma tradição de poesia mítica cômica na região, desconhecemos – em que a representação dos deuses é muito próxima, desbragadamente próxima, do humano, e, por isso, dotada talvez de maior curiosidade e interesse imediato para nós do que as narrativas sobre grandes reis e suas linhagens.

 

O festim divino de El


El abate a caça em sua morada,

Mata as bestas em seu palácio,

Aponta aos deuses os cortes da carne

 

Os deuses comem e bebem

Bebem do vinho até que baste,

Da vindima até que fiquem bêbados.

 

Yarikh grelha o lombo como um [   ].

Agarra a sobrecoxa sob as mesas.

 

Para o deus que conhece,

Grelha um banquete para que se farte;

Para os deuses que desconhece,

Dá pauladas sob a mesa.

 

Ele se aproxima de Athtartu e Anat,

Athtartu lhe grelha um filé,

Anat assa uma costela.

 

O porteiro da morada de El o censura,

Que não grelhe filé para um cão,

Que não asse costela para um viralata.

Ele censura a El, seu pai, também.

 

El se senta…

El se assenta ao bacanal.

 

El bebe do vinho até que baste,

Da vindima até que fique bêbado.

 

El vai cambaleante até sua morada,

Tropeçando adentra seu pátio.

 

Thukamuna e Shunama o carregam,

Habayu então esbraveja com ele,

O dos dois chifres e um rabo.

 

Ele escorrega em seu esterco e urina,

El cai como um morto

El como os que descem à Terra.

 

Athtartu e Anat seguem para uma caçada

 

Athtartu e Anat…

E com elas trouxeram…

Como se sara quando se rejuvenesce.

 

Sobre seu cenho se deve pousar:

– pelos de cão

– a copa da planta pqq e sua haste

Misturar com o sumo de azeite virgem.

 

 

 

El’s divine feast

 

El slaughers game in his house,

Butchers beasts in his palace,

Bids gods to the cuts of beef.

 

The gods eat and drink,

Drink wine till sated,

Vintage till inebriated.

 

Yarikh grills the haunch like a [    ].

Grabs the hind-quarter beneath the tables.

 

As for the god whom he knows,

He grills fare for him to feast;

As for the god he does not know,

He strikes with sticks beneath the table.

 

He nears Athtartu and Anat,

Athtartu grills a steak for him,

Anat roasts a rack of ribs.

 

The porter of El’s house chides them,

Not to grill a steak for a dog,

Not to roast a rib for a cur.

He chides El, his father, too.

 

El sits…

El settles into his bacchanal.

 

El drinks wine till sated,

Vintage till inebriated.

 

El staggers into his house,

Stumbles in to his court.

 

Thukamuna and Shumana carry him.

Habayu then berates him,

He of two horns and a tail.

 

He slips into his dung and urine,

El collapses like one dead

El like those who descend to Earth.

 

Athtartu and Anat march off to hunt

 

Athtartu and Anat…

And with them they brought back…

As when one heals to return to youth.

 

On his brow one should put:

– hairs of a dog

– the top of a pqq-plant and its stem

Mix it with the juice of virgin oil.

 

(poema ugarítico anônimo, tradução de Adriano Scandolara sobre a tradução inglesa de Theodore J. Lewis)

 

A CIDADE DE UGARIT

 




Ugarit foi uma cidade portuária do Oriente Próximo localizada nos arredores de onde hoje se situa Ras Shamra, no norte da Síria, perto do monte Hérmon e da ilha de Chipre. Ela foi destruída por volta do final da Era do Bronze e, num dos grandes achados arqueológicos do século XX (ainda mais impressionante pelo fato de ter ocorrido por completo acidente), só veio a ser redescoberta em 1928. Situada numa posição excelente para o comércio, num ponto de encontro entre quase todos os povos da região, Ugarit floresceu cultural e financeiramente, tornando-se um dos grandes centros cosmopolitas do mundo antigo.

A cidade tinha o seu próprio idioma, o ugarítico, uma língua semítica cananeia, parente do fenício, do aramaico e do hebraico. Diferente dessas línguas, porém, o ugarítico não utilizava um sistema de escrita derivado do fenício. O hebraico, por exemplo, utilizava um abjad (esse tipo de alfabeto comum no Oriente Próximo e Médio que, diferente dos alfabetos completos, não marca as vogais ou as marca só com diacríticos) descendente do fenício, o chamado alfabeto paleo-hebraico, até cerca do século V a.C., quando foi substituído por um alfabeto diferente derivado do aramaico – só os samaritanos, porém, que são um outro povo semítico que disputa com os judeus o título de herdeiros da tradição israelita e que hoje são uma minoria, mantiveram o paleo-hebraico. Já o ugarítico desenvolveu o seu próprio sistema de escrita com base no cuneiforme. O cuneiforme, como se sabe, é o sistema que utiliza uma cunha para traçar os caracteres numa tabuleta de argila e que, até onde se tem registro, foi inventado e utilizado pelos sumérios desde pelo menos por volta do terceiro milênio antes de Cristo. Nos diz a assirióloga Marie-Louise Thomsen, em seu The Sumerian Language: an Introduction, que a escrita do sumério se desenvolveu não como uma forma de representação da fala, mas como um auxílio mnemônico, o que é um motivo pelo qual as tabuletas sumérias mais antigas são de uma extrema dificuldade para serem decifradas (não por acaso, os textos que formam corpus que a autora usa para tratar da gramática da língua datam de entre 2600 e 900 a.C.). Com o tempo, a escrita foi se tornando mais complexa e passou a representar, mais ou menos, frases inteiras, o que se tornou muito importante para a sobrevivência da língua por escrito do período neossumério (2200 a 2000 a.C.) em diante, em que ela deixou de ser falada na mesopotâmia, mas continuou a ser utilizada em textos de natureza burocrática, literária e religiosa.

A unidade do cuneiforme sumério era um grafema chamado de logograma: AN, por exemplo, era o símbolo para “deus”, “acima” ou “céu”. Combinado com A (“água”… mas também “sêmen”), forma a palavra “chuva” (na imagem ao lado), A.AN, transliterada “šeĝ” (“sheg”, mas a pronúncia exata é desconhecida e incognoscível). É bem complicado e não convém agora entrar nos pormenores, que envolvem ainda questões de homofonia e variações e tudo o mais, mas é interessante apontar que esse sistema foi repassado aos acádios, um povo semita como os ugaríticos (diferente dos sumérios, que não eram semitas e cuja língua é considerada uma língua isolada), e sua cultura e língua se desenvolveram lado a lado com a suméria – diz-se dos dois que linguisticamente formam um Sprachbund, de modo que é difícil dizer quais palavras e construções (incluindo a ordem das palavras na frase) do sumério são originalmente sumérias e quais são empréstimos do acádio, e vice-versa. Uma narrativa como o Épico de Gilgamesh, tal como o reconhecemos hoje, parte de fontes acádias, mas a mitologia em torno da figura de Gilgameš, rei de Uruk, tem origem numa tradição anterior de tabuletas sumérias.

Acontece, porém, que, por conta de questões fonológicas, essa forma de escrita não era bem adequada ao acádio (e isso talvez tenha pesado na hora de manter o sumério como língua burocrática, mesmo após o acádio se tornar a língua oficial das sucessões de impérios babilônicos). Os escribas de Ugarit, então, resolveram o problema desenvolvendo o seu próximo alfabeto: a escrita do ugarítico é cuneiforme, visto que também se faz com uma cunha sobre uma tabuleta de argila, mas, diferente da do sumério e do acádio, ela consiste num abjad com uma letra para cada consoante (com algumas duplicadas, como ocorre também com o hebraico). Esse sistema também foi utilizado para escrever textos em acádio, tal como atestam alguns documentos escavados em Ugarit.

Ugarit tinha ainda sua própria religião e mitologia, e a sua descoberta serviu para iluminar algumas questões importantes para os estudos bíblicos. A religião ugarítica, ainda que tenha alguns deuses menores, se concentra basicamente sobre o casal principal de divindades, El, pai dos deuses, e sua esposa Asherah, a Rainha dos Céus. O casal tem três filhos, Hadad (também chamado Baal, “Senhor”), Yamm e Mot. Hadad, deus das tempestades, governa sobre os céus, Yamm, sobre os mares, e Mot, sobre o mundo dos mortos, numa relação que parece muito próxima da espelhada pelos deuses gregos Zeus, Posêidon e Hades, respectivamente (já Crono, pai de Zeus, não seria um bom equivalente para El, e o paralelo meio que termina aí). El, que é o nome próprio da divindade, mas também um termo genérico para “deus”, provavelmente deriva de Ilu, termo acádio para “deus” que traduz o An ou Anu sumério, e o nome, como se sabe, é usado com frequência na Bíblia para se referir a YHWH, o deus dos israelitas, presente tanto em construções como “El Shaddai” (“Deus Poderoso”) quanto em palavras como “Israel” (“o que lutou com Deus”). De fato, nas últimas décadas, diversos autores, como Raphael Patai e Frank Moore Cross, têm traçado paralelos entre El e YHWH, e é muito provável que os dois fossem adorados como a mesma divindade na região, com frequência junto de Asherah, que, se a hipótese de Patai estiver correta, acabou eliminada da Bíblia e dos cultos após o Primeiro Templo ser derrubado e a elite religiosa israelita fechar o cerco contra o politeísmo. Há cartas em aramaico da região, datando de pelo menos 500 a.C., em que os autores usam certas expressões equivalentes a um “deus te abençoe” que indicam o culto a YHWH lado a lado com outros deuses, como Ptah, Khnum e Asherah (mais sobre isso no livro Ancient Aramaic and Hebrew Letters, editado por James M. Lindenberger & Kent Harold Richards). Há outros resquícios de referências a deuses pagãos ainda no hebraico que podem ser encontrados inclusive no texto biblico: Shamash/Utu era o deus acádio/sumério do sol, e “shemesh” (שמש) é “sol” em hebraico. Mot (m.t.), o deus do submundo, lembra “mawet” (מות), nome utilizado para personificação da morte no texto bíblico, ao passo que “met” (מת), sem o vav no meio (o caractere hebraico para o som de “v”, que é uma mater lectionis e também funciona para marcar as vogais “o” e “u”), significa “morto”. E assim por diante.

Muitos textos oficiais (a principal função da escrita, em sua origem, era provavelmente burocrática) e alguns literários foram recuperados em Ugarit. Os mais longos de que se tem notícia foram analisados e traduzidos no volume Ugaritic Narrative Poetry, organizado por Simon B. Parker (tradutores: Mark S. Smith, Simon B. Parker, Edward L. Greenstein, Theodore J. Lewis e David Marcus), que são os épicos Kirta, Aqhat e Baal. O volume, de que me vali para fazer este post, também acompanha 10 outros poemas mais curtos, dos quais um eu selecionei para traduzir para o português a partir da tradução inglesa de Theodore J. Lewis.

 

 

A RELIGIÃO DE UGARIT

 


A religião ugarítica foi formada por várias categorias de divindades, e cada divindade correspondia à forma como o universo e os espaços físicos eram vistos5 . Cada divindade corresponde a um reino cósmico e espacial do universo como interpretada pela população de Ugarit. Nessa estrutura, em termos de divindades, existe divisão entre divindades benéficas, que são representadas antropomorficamente, e divindades maléficas, que são representadas em formas monstruosas, como veremos a seguir, para exemplificar, dois textos de Ugarit. O primeiro descreve Tunannu, um inimigo cósmico, como uma serpente com sete cabeças:

KTU 1.3 III,40–42

Certamente eu a amarrei e a destruí (?)

Eu lutei com a serpente sinuosa,

uma potestade com sete cabeças.

Da mesma forma, o segundo texto descreve Mot relembrando Baal da luta em

que o deus da tempestade derrotou Leviatã em termos muito parecidos:

KTU 1.5 I 1–3

Você matou Litan, a Serpente Voadora,

Aniquilou a Serpente Sinuosa,

Uma potestade com sete cabeças.

Essa distinção entre caos e ordem, deidades benéficas e deidades destrutivas diferenciava, a partir da elite urbana de Ugarit, o centro (ou o lar) e a periferia. Assim, tudo que é urbano, cultivado e cultural, é diferenciado por oposição ao não cultivado, não cultural e periférico. Nessa concepção, o centro significa a ordem simbólica das

 

“Sobre a estrutura das divindades de Ugarit, ver: SMITH, Mark, S. O Memorial de Deus: História,

Memória e a Experiência do Divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006, p. 134-150.”

 

coisas e dos valores da sociedade. Em Ugarit, como já demonstrado em nossa pesquisa, foi centro cultural de produção de textos, da administração e do ritual.

No centro se encontra a casa, que expressa ao mesmo tempo à proteção familiar e os conflitos domésticos, e também se encontra a terra, patrimônio familiar. A periferia se apresenta como zona de transição entre o centro e as regiões distantes do cosmos, locais de difícil acesso para a experiência humana. Podemos também acrescentar em conjunto com o centro e a periferia, as regiões que vão além da periferia.

A distinção entre o centro e a periferia é expressa por termos agrários como semear

versus a estepe. Podemos verificar essa distinção em um texto ugarítico6 :

KTU 1.23,65–69  

Oh filhos! Ali produziu!

Fiz uma sagrada oferenda

no meio do deserto,

ali a permanência é curta

e existem dificuldades no meio de rochas e arbustos.

Por sete anos completos

oito ciclos de duração,

os graciosos deuses andaram sobre a estepe,

eles procuraram até as extremidades do deserto,

os dois encontraram–se com o guarda da semente

e os dois gritaram ao guarda da semente:

Oh guarda, Oh guarda, Abra!

E o próprio guarda abriu uma abertura para eles

E os dois entraram.

De acordo com esse texto, a semente contém alimento em abundância e vinho:

KTU 1.23,70–76

Se [ali existe para nós a]limento

dê–nos para que possamos comer!

Se ali [ para nós existe vinho]

dê–nos para que possamos beber!

E o guarda da semente respondeu para eles:

[existe comida para alguém que... (?)]

existe vinho para todos que entram... [...]

...ele próprio aproximou–se

ele serviu um pouco de seu vinho

e suas companhias[ saciaram–se] com vinho

O mapeamento das divisões do espaço cósmico e divino é feito pela separação

entre deidades e demônios. Deidades habitam lugares próximos do cultivo e das

pessoas, enquanto demônios ou monstros não. As deidades possuem lugar de culto e

 

“Ver: SMITH, Mark S. The Ritual Miths of the Feast of the Goodly Gods of KTU/CAT 1.23: Royal Constructions of Opposition, Intersection, Integration and Domination (Resources for Biblical Studies). Atlanta: Society of Biblical Literature, (nº 51), 2006.“

 

montanhas sagradas, e vários textos de Ugarit demonstram isso: El no Monte Ks, Baal no monte Safon ( KTU 1,100,9), Anat e Athtart no monte ’inbb (KTU 1.100,20), etc. Os inimigos cósmicos geralmente não possuem montanhas sagradas. As montanhas apontam para o nível celestial onde as divindades vivem. O deus Mot é uma exceção à regra, pois para chegar à montanha na qual a deidade mora, os mensageiros dos deuses precisam levantar a montanha para descer ao submundo e encontrar Mot.

No nível cósmico e vertical, as deidades benéficas habitam o céu, enquanto as

forças monstruosas e demoníacas habitam o submundo ou o oceano cósmico. Mais especificamente, os reinos são divididos pelas divindades Baal, Yam e Mot. Baal governa o céu, Yam o mar, e Mot o submundo.

Em contraste com o centro, a estepe é caracterizada como uma região de rochas e arbustos. A estepe se caracteriza como lugar de perigo e transição. É nessa região que vão surgir os inimigos de Baal, o deus da fertilidade, para confrontá–lo.

Entre as divindades benéficas de Ugarit, podemos identificar níveis de hierarquia entre os deuses. No topo, temos um deus que reina e sua rainha consorte.

Abaixo, temos as outras divindades que servem ou são subordinadas às divindades chefes do panteão. Segundo esse esquema, podemos separar os níveis do panteão ugarítico em:

A alta autoridade do panteão

Deuses de maiores destaques

Deuses artesãos

Deidades mensageiras

Essa ideia básica familiar inclui o patriarca e sua esposa, seus filhos e familiares, assim como trabalhadores e escravos. A linguagem monárquica encontrada nos relatos envolvendo as divindades de Ugarit claramente reflete a casa monárquica.

A mais alta posição é ocupada por El, que é pai dos deuses, que preside o panteão epromulga decretos. Quando analisamos a literatura ugarítica, percebemos que através de seus epítetos, El foi visto como o deus criador por excelência:

KTU 1.4 II, 11

 

“Ver a função burocrática dos deuses de Ugarit no estudo de: HANDY, Lowel K. Dissenting Deities or

Obedient Angels: Divine Hierarchies in Ugarit and the Bible. Biblical Research, 35, 1990, p 18-35. ”

 

Ela rogou ao touro El,

O deus da misericórdia,

Ela suplica ao criador das criaturas.

Outro exemplo se encontra em KTU 1.6 III, 5:

No sonho do benigno,

de El, o misericórdioso,

Na visão do criador das criaturas.

Percebemos nesses epítetos não só a característica de criador das criaturas em El, mas

também o caráter de “misericordioso”8 .

Como criador, El permanece como cabeça do panteão cananeu, e como pai dos

deuses:

KTU 1.123,1

(Salve), óh pai e o (resto dos) deuse[s]!

(E) salve, salve, ó E [l (...)]!

[S]alve, óh El, o príncipe!

Como seus filhos, os deuses são na coletividade chamados de filhos de El (KTU 5.I.13;

32.I,2,9,16,25,33). Além de Yam, Mot e Anat, Baal é chamado de filho de El:

KTU 1.3 V, 35–36

Suspirando, proferiu assim ao Touro El, seu pai:

El, o rei, que criou ele

Nesse texto, Anat está na presença de El requerendo a construção de um palácio para

Baal. Anat se refere à Baal como “filho de El”, aquele que o criou.

O próprio Baal exalta El como aquele que formou e criou os deuses:

KTU 1.10 III,6–7

Eis! Nosso criador é eterno,

Eis! Imutável é ele que nos formou!

Fica claro que El é lido na literatura ugarítica como pai dos deuses, misericordioso, imutável e criador das criaturas. Por esses motivos, os deuses o reverenciam como um deus ancião, pai dos anos9 e chefe conselheiro do panteão.

“Para um estudo sistematizado dos epítetos das divindades cananeias, ver: RAHMOUNI, Aicha. Divine Epithets in the Ugaritic Alphabetic Texts. Leiden/Boston: Brill, 2008.”

 

Com El no topo do panteão, aparece a sua esposa Athirat, a Asherah bíblica,

que é descrita como mãe dos deuses10 :

KTU 1.4 I,22

Preparem por favor! Um presente em reverência,

para a senhora Asherah do mar,

um presente de súplica para a progenitora dos deuses.

Os deuses foram chamados de “setenta filhos de Asherah” (KTU 1.4 VI, 46). Embora discute se entre os estudiosos se Asherah em Ugarit exerce poder parecido do seu esposo El, não há dúvidas que ela tem forte influência em decisões referentes ao reinado cósmico (KTU 1.4 IV), e na participação do processo de decisão na escolha de um sucessor real para Baal:

KTU 1.6 I, 43–55

Em voz alta gritou El,

para a grande dama Asherah do mar:

escuta, óh grande dama Asherah do mar!

Dê–me um dos seus filhos para fazer–lhe rei.

No segundo nível, no qual aparecem divindades de maiores destaques,

encontram–se deidades astrais que é atestado em KTU 1.43,2–311, mas em geral as

divindades com essas características não são muito especificadas. Uma possível exceção

para identificarmos uma família astral de El se encontra em KTU 1.10 I, 3–5:

O qual os filhos de El não conhecem (?)

A assembleia das estrelas

O círculo daqueles do céu

Em contexto diferente, podemos reforçar a opinião de que El possuía como filhos, divindades de caráter astral. Shahar (aurora) e shalim (crepúsculo) são dois filhos de El, de acordo com KTU 1.23,50–53. O deus–lua Yarih é identificado como o favorito de El em KTU 1.24.25. Em KTU 1.92,14–16 Athtart’s providencia carne para El e Yarih, e este presumivelmente deve ser um membro da casa celestial. O deus sol Shapsu aparece servindo mensageiros de El em KTU 1.6 VI. Outras divindades astrais

“PARDEE, Dennis. Ritual and Cult at Ugarit. (Edited by Theodore J. Lewis). Atlanta: Society of Biblical Literature, 2002, p. 69-70.”

de destaque são Athtar e Athtart (KTU 1.92,14–16) Resheph, que aparece em KTU

1.7812 .

Nesse segundo nível da família divina, Baal, Yam, Mot são deuses que competem pelo domínio cósmico e parecem exercer maiores influências na literatura ugarítica. Precisamos salientar que os mitos de Ugarit destacam o crescimento de Baal como deus vitorioso e obtendo o seu reinado, como descrito no Ciclo de Baal–Yam (KTU 1. 1–2) e Baal–Mot (KTU 1. 3–6)13. Nesses conflitos contra essas divindades que simbolizam o caos, Baal sai vitorioso e sua vitória é simbolizada pela construção de seu  templo e consequentemente, a sua ascensão sobre os outros membros do panteão14 .

A função do reinado cósmico de Yam nesses mitos não é certa. Mas ele aparece em KTU 1.2 III privilegiado com um palácio, símbolo da sua função como rei. Em KTU 2.1,17,33–34, ele é proclamado “senhor” por El. Esses textos demonstram que Yam foi visto em Ugarit como um poderoso monarca. Para obter o seu reinado, foi preciso Baal derrotar o seu rival, e assim tirar das mãos de Yam o reino cósmico:

KTU 1.2 IV 32

“Sem dúvida, Yam está morto,

Baal se transformou em rei...”

Nos textos ugaríticos, não temos a informação de como Yam se tornou rei. Mas temos nos textos indícios que esse reinado foi dado por El, pois ele é chamado de “amado de El” (KTU 1.1 IV, 20; 1.3 III, 38–39; 1.4 II, 34)15. Como personificação do mar, ( KTU 1.1,21,23) Yam foi visto como o maior adversário para o estabelecimento da ordem no cosmos. Com a vitória, Baal se transformou no mais poderoso deus e digno de reinar o reino cósmico. Mesmo com a legitimação de Yam por El nos textos ugaríticos, a vitória de Baal foi aprovada por El. A conquista do seu reinado derrotando Yam habilita Baal a possuir o Monte Safon, o qual é associado com essa divindade nos textos ugaríticos. Baal é chamado de “cavaleiro das nuvens”, devido talvez ao topo da montanha que fica coberto por nuvens.

 

“Para um estudo das divindades astrais em Ugarit, ver: SMITH, Mark S. The Origins Of Biblical

Monotheism: Israel Polytheistic Background and the Ugaritic Texts. New York/Oxford: Oxford

University Press, 2001, p. 61- 66.

13 Confira Del Olmo Lete, 1981, p.155-213.

14 Ver: JR. E. Theodore Mullen. The Assembly of Gods: The Divine Council in Canaanite and Early

Hebrew Literature. Michigan: Scholar Press, 1980, p. 46-84.

15 Confira Rahmouni, 2008, p.212-214.

16 Para um estudo mais aprofundado sobre a relação do Monte Safon e Baal ver a dissertação de mestrado

de: MENDONÇA, Elcio Valmiro Sales de. Monte Sião, Extremidade do Safon: Estudo da Influência

da Mitologia Cananeia na Teologia de Sião à Partir da Análise Exegética do Salmo 48. São Bernardo

do Campo: Umesp, 2012. ”

 

Outro adversário cósmico para Baal foi Mot, o deus da morte, que reinou o submundo (KTU 1.4, VIII, 1–24) e desejou aumentar o seu poder, e reino no lugar de

Baal:

KTU 1.4 VII, 47–52

Para que grite Mot em sua alma

se instrua o amado de El em seu interior:

você é o único que reinará sobre os deuses

e que verá saciados deuses e homens

e que saciará as multidões da terra.

O desejo de Mot é um conflito direto com Baal e tomar o poder das mãos do deus da tempestade e da fertilidade. O que Mot almeja é tirar a fertilidade da terra e provocar a escassez para reinar sobre o cosmos. O conflito é certo, pois segundo KTU 1.4, VII, 42–44 Baal proclama de sua montanha templo que nenhum rei se estabelecerá em seu domínio. No momento em que o reino de Baal está no seu ápice, Mot entra em cena para colocar perigo ao domínio da divindade fertilizadora. A luta dessas duas divindades pelo reino cósmico representa fertilidade e morte.

A progressão do mito envolvendo Baal e Mot é perceptivelmente coerente, pois depois de se livrar de Yam, o deus que representa as forças caóticas do mar, Baal terá que enfrentar o deus da morte, da infertilidade. Da mesma forma que Yam, os textos não explicam como Mot obteve o seu reinado. Mot é chamado de “amado de El”, e de “herói”: KTU 1.4 VII, 46–47

Eu certamente enviarei um mensageiro

para o filho de El, Mot,

uma mensagem para o amado de El, o herói.

Assim como Yam, Mot tem um relacionamento especial com El e foi nomeado rei pela divindade. Mot representa uma força primária no universo, ou seja, a morte.

Baal estendeu o seu domínio sobre as forças do mar caótico, agora deveria derrotar o deus da esterilidade e da morte. Somente assim o cosmos voltaria a ser seguro e fértil.

Baal desce ao submundo para enfrentar Mot e seu destino é contado a El pelos mensageiros do deus da fertilidade:

KTU 1.5 VI, 9–10

Baal está morto, o vitorioso

pereceu o príncipe, o senhor da terra

Após esse acontecimento, El lamenta a derrota de Baal e um rito pela morte do

deus tem início (KTU 1.5 VI, 11–25). O lamento de El revela um terrível efeito na natureza da terra. A morte triunfou sobre a fertilidade. Parece–nos que El mesmo com o posto de deus chefe do panteão, respeita os domínios cósmicos e não influencia nas lutas entre as divindades que governam cada região do cosmos.

Após o triunfo do deus da morte, Anat, a deusa guerreira nos textos ugaríticos, começa a buscar por Baal (KTU 1.5 VI, 26–31). Após sepultar Baal e oferecer ela própria um sacrifício pela morte do deus da tempestade no Monte Safon ao lado de Shapsu (KTU 1.6 I, 11–31), ela confirma à El a morte de Baal (KTU 1.6 I 32–43). El e Asherah escolhem Attar como substituto para Baal, mas Attar é incapaz da posição (KTU 1.6 I 53–65). A natureza e a ordem do cosmos estão em grande perigo, pois ninguém é capaz de governar no lugar de Baal.

No final do Ciclo de Baal–Mot, lemos que Anat, a companheira guerreira de Baal,agarra Mot e exige o retorno de seu irmão do submundo cósmico (KTU 1.6 II, 9–12). Mot se nega e reconta como derrotou o deus da tempestade (KTU 1.6 II, 13–23).

 Anat ataca–o e o mata: KTU 1.6 II, 30–35

Ela agarrou o filho de El, Mot

ela perfurou ele com uma espada

ela espalhou ele como uma peneira

ela queimou ele no fogo

ela triturou ele como pedras de moinho

ela semeou ele no campo

Mot foi totalmente destruído em um ritual de plantação para produzir a fertilidade. Anat frustra os planos de Mot de estender o seu reinado até os domínios de Baal. Com a derrota de Mot, Baal revive. El em uma visão descobre que Baal ressuscitou:

KTU 1.6 III, 20–21

Eis! Baal o vitorioso vive!

Certamente o príncipe,

o senhor da terra existe!

Baal revive e a ordem triunfa sobre as forças caóticas da morte. Anat que é narrada nesses textos com destaque, pertence ao grupo de divindades de maior importância em Ugarit. Ela é irmã de Baal e filha de El (KTU 1.3 V, 26–28). Seu relacionamento com Asherah parece sugerir que ela não seja de sua descendência. Demonstra extrema violência e autoridade diante do deus chefe dosdeuses, El (KTU 1.3 V, 19–25). Ela é descrita com poder enganador e furioso no panteão. Mas a chave para entender Anat é seu forte amor por seu irmão, Baal.

No terceiro nível cósmico vemos Kothar –Wa– Hasis como o deus artesão em Ugarit por excelência. Ele serve os dois graus da família divina e é solicitado por El para a construção de um palácio para Baal (KTU 1.1 III). Além do palácio, fabrica uma arma para Baal (KTU 1.2 IV). Kothar ocupa um lugar abaixo das grandes divindades do panteão, e como servo divino, desenvolve várias funções para as grandes deidades.

Kothar não serve apenas as divindades com sua mão–de–obra, mas também com seus

conselhos, palavras e sabedoria (KTU 1.4 VII).

Assim como as casas familiares em Ugarit, o panteão também tem os seus trabalhadores, servos e mensageiros divinos. Podemos identificar no último nível, deuses menores que servem a um grande deus guerreiro (KTU 1.5 V).

Portanto, seguindo a estrutura familiar divina de Smith18, com algumas variantes propostas para essa pesquisa, os níveis da família divina de acordo com suas hierarquias são:

Nível 1: O deus ancião El e sua esposa Asherah

Nível 2: Os filhos divinos: Athtart e Athtar (a noite e a estrela da manhã);

Shapsu (sol); Yarih (lua); Shahar (aurora); Shalim (crepúsculo);

Resheph (Marte?); Baal (deus da Tempestade); Yam (deus do mar);

Mot (deus da morte); Anat (deusa guerreira);

Nível 3: Kothar–Wa–Hasis (deus artesão)

Nível 4: trabalhadores divinos: mensageiros, porteiros, servos.

Algumas dessas divindades aparecem na Bíblia Hebraica, a qual passaremos a analisar.