O Diário de Merer (também conhecido como Papiro Jarf) é o nome dado a registros em papiro escritos há mais de 4.500 anos por Merer, um oficial de nível médio. São os papiros mais antigos conhecidos com texto, datando do 27º ano do reinado do faraó Quéops (c. 2589–2566 a.C.) durante a 4ª dinastia.
Situado na costa egípcia do Mar Vermelho, Wadi al-Jarf é hoje um local sossegado e despretensioso. As areias secas do deserto e a água azul e plácida estendem-se até onde a vista alcança. Do outro lado do mar, é possível avistar a Península do Sinai. Esta aparente tranquilidade disfarça o movimentado centro que aqui existiu há mais de 4.000 anos. A importância histórica de Wadi al-Jarf foi consolidada em 2013 quando 30 papiros, os mais velhos do mundo, foram descobertos escondidos em grutas escavadas pelo homem em pedra calcária.
Além da sua idade, os chamados Manuscritos do Mar Vermelho são notáveis devido ao seu conteúdo. Não só revelam o passado distante de Wadi al-Jarf enquanto porto cheio de vida como contêm relatos na primeira pessoa de um homem chamado Merer, que participou na construção da Grande Pirâmide do faraó Khufu.
O sítio de Wadi al-Jarf foi descoberto em 1823 por um antiquário e viajante inglês chamado John Gardner Wilkinson, que pensou que as ruínas pertenciam a uma necrópole greco-romana.
Mais tarde, na década de 1950, dois pilotos franceses apaixonados por arqueologia, François Bissey e René Chabot-Morisseau, voltaram a tropeçar no sítio. Sugeriram que tivesse outrora sido um centro de produção metalúrgica. No entanto, a crise do Suez, ocorrida em 1956, atrasou investigações mais aprofundadas.
Os trabalhos só foram retomados em 2008. O egiptólogo francês Pierre Tallet liderou uma série de escavações que identificaram definitivamente Wadi al-Jarf como um importante porto com cerca de 4.500 anos, remontando ao reinado de Khufu e contemporâneo da construção da Grande Pirâmide. As equipas de Tallet revelaram que Wadi al-Jarf era um pólo económico vibrante situado no centro do comércio dos materiais utilizados para construir as pirâmides, a cerca de 241 quilómetros de distância. Comprovando as evidências arqueológicas, o fabuloso diário de Merer foi encontrado entre os papiros.
O sítio de Wadi al-Jarf é composto por várias zonas diferentes, abrangendo vários quilómetros entre o Nilo e o Mar Vermelho. Partindo do rio Nilo, a primeira zona, situada a cerca de cinco quilómetros da costa, contém cerca de 30 grandes câmaras de armazenamento escavadas no calcário. Foi aí que os papiros foram descobertos.
Avançando cerca de 460 metros para leste, em direcção ao mar, surge uma série de campos e, depois destes, um grande edifício em pedra dividido em 13 secções paralelas. Os arqueólogos supuseram que o edifício fosse utilizado como residência. Por fim, na costa, encontra-se o porto propriamente dito, com habitações e mais espaços de armazenamento. Utilizando a cerâmica e as inscrições existentes no sítio, os arqueólogos conseguiram enquadrar cronologicamente o complexo portuário na quarta dinastia do Egipto, há cerca de 4.500 anos.
Eles acham que o porto foi inaugurado no tempo do faraó Seneferu e abandonado por volta do fim do reinado do seu filho Khufu. Funcionou durante pouco tempo, mas nesse período, o porto esteve dedicado à construção do túmulo de Khufu, conhecido na altura como Akhet-Khufu, o “Horizonte de Khufu”.
Para além dos papiros, muitas outras descobertas arqueológicas importantes revelaram a importância do porto. Estruturas de grande dimensão, como o pontão em pedra com 180 metros de cumprimento, mostram um grande investimento na zona. Tallet e a sua equipa descobriram mais de 130 âncoras, cuja presença implica um porto movimentado.
Zarpando do porto, apelidado de “O Mato” pelos antigos egípcios, os navios do faraó atravessavam o Mar Vermelho até à Península do Sinai, rica em cobre. O cobre era o metal mais duro disponível na altura e os egípcios precisavam dele para cortar as pedras para a gigantesca pirâmide do seu faraó. Quando regressavam ao porto, os navios egípcios vinham carregados de cobre. Entre viagens, os navios ficavam guardados nas câmaras de calcário.
Quando o porto de Wadi al-Jarf foi encerrado, por volta da altura da morte de Khufu, os registos mostram que uma equipa veio de Gizé para fechar os espaços de armazenamento escavados no calcário. Esta equipa era conhecida pelo nome de Equipa de Acompanhantes do “Ureu de Khufu e a Sua Proa”, numa muito provável referência a um navio com o Ureu (serpente protectora) na proa. Durante o processo de encerramento das grutas calcárias, os documentos em papiro de Merer, entretanto obsoletos, ficaram entre os blocos de pedra.
Permaneceram expostos ao ar do deserto durante cerca de quatro milénios e meio até serem descobertos, numa escavação liderada por Tallet, em 2013. O primeiro conjunto de Manuscritos do Mar Vermelho fora encontrado no dia 24 de Março desse ano, junto à entrada do espaço de armazenamento designado como G2. O segundo e maior conjunto de documentos foi descoberto dez dias mais tarde, enfiado entre blocos no espaço de armazenamento.
Os arqueólogos encontraram centenas de fragmentos de papiro nas grutas de Wadi al-Jarf. Escritos com tinta preta e vermelha, os textos mencionam o faraó Khufu. Muitos destes fragmentos foram reconstruídos de modo a formar documentos – alguns com cerca de meio metro!
Há vários tipos de documentos entre os Manuscritos do Mar Vermelho, mas foram os escritos de Merer que mais excitação causaram. Líder de uma equipa de operários, Merer registava as suas actividades num diário. É um relato diário do trabalho executado pela sua equipa ao longo de um período de três meses, durante a construção da Grande Pirâmide.
A equipa de Merer era composta por cerca de 200 trabalhadores que viajavam por todo o Egipto e eram responsáveis por executar todo o tipo de tarefas relacionadas com a construção da Grande Pirâmide. Uma das mais interessantes foi a extracção dos blocos de calcário utilizados para revestir a pirâmide. Merer registou com grande pormenor a forma como a equipa os removeu das pedreiras de Tura e os transportou de barco até Gizé.
Os homens de Merer colocavam os blocos de calcárioem barcos, transportavam-nos rio acima, e assistiam à sua contagem numa zona administrativa antes de serem despachados para Gizé. Um fragmento do diário relata a viagem de três dias desde a pedreira até ao local de construção da pirâmide.
Dia 25: O Inspector Merer passa o dia com a sua za [equipa] a transportar pedras no sul de Tura; passa a noite no sul de Tura.
Dia 26: O Inspector Merer zarpa do sul de Tura com a sua za, com uma carga de blocos de pedra, dirigindo-se a Akhet-Khufu [Grande Pirâmide]; passa a noite em She-Khufu [zona administrativa com espaço de armazenamento para a cantaria, mesmo antes de Gizé].
Dia 27: Embarque em She-Khufu, viagem até Akhet-Khufu com a carga de pedras, pernoita em Akhet-Khufu.
No dia seguinte, Merer e os seus trabalhadores regressaram à pedreira para buscar um novo carregamento de pedras:
Dia 28: Partida de Akhet-Khufu de manhã; navegando rio acima até ao sul de Tura.
Dia 29: O Inspector Merer passa o dia com a sua za a carregar pedras no sul de Tura; passa a noite no sul de Tura.
Dia 30: O Inspector Merer passa o dia com a sua za a carregar pedras no sul de Tura; passa a noite no sul de Tura.
O diário de Merer até fornece um vislumbre de um dos arquitectos da pirâmide. Ankhhaf, meio-irmão de Khufu, detinha a posição de “chefe de todas as obras do rei”. Um dos fragmentos de papiro diz: “Dia 24: O Inspector Merer passa o dia com a sua za a carregar [falta texto] com pessoas com cargos de elite, equipas de seguidores e o nobre Ankh-haf, director de Ro-She Khufu.”
Os materiais utilizados na construção da Grande Pirâmide vieram de todo o Egipto: calcário das pedreiras de Tura, junto ao Cairo, basalto de Fayyum, granito de Assuão e cobre da Península do Sinai. Para transportar estes materiais rápida e eficazmente, foram construídas vias aquáticas em Gizé para que que pudessem viajar de barco durante o máximo de tempo possível. Estes corpos de água transbordavam com as cheias de Verão e incluíam “A Foz do Lago de Khufu”, que servia de acesso a dois lagos interiores, próximos do local de construção da pirâmide: o “Lago de Khufu”, na ponta oposta do local de construção principal e o “Lago do Horizonte de Khufu”, uma lagoa mais pequena que era provavelmente utilizada por embarcações mais pequenas. Para facilitar ainda mais os trabalhos, foi construída uma pedreira para cortar os blocos de pedra utilizados na estrutura interior junto ao local de construção da pirâmide.
Merer também acompanhou cuidadosamente os pagamentos da sua equipa. Como não havia moeda corrente no Egipto faraónico, os salários costumavam ser pagos em medidas de cereal. Havia uma unidade básica, a “ração” e o trabalhador recebia mais ou menos consoante a sua categoria na hierarquia administrativa. Segundo os papiros, a alimentação básica dos trabalhadores consistia em hedj (pão levedado), pesem(pão ázimo), carnes diversas, tâmaras, mel e leguminosas, tudo acompanhado com cerveja.
Há muito que se chegou a consenso quanto ao facto de uma grande força laboral ter construído a Grande Pirâmide, mas os historiadores discutiram durante muito tempo sobre o estatuto dessa mão-de-obra. Muitos diziam que os trabalhadores deveriam ser pessoas escravizadas, mas os Manuscritos do Mar Vermelho contradizem essa ideia. Os registos de pagamento pormenorizados de Merer demonstram que os construtores das pirâmides eram trabalhadores hábeis que eram remunerados pelos seus serviços.
Existe algo ainda mais extraordinário nas linhas dos frágeis papiros. As palavras de Merer são um relato na primeira pessoa de alguém que não só testemunhou a construção das pirâmides, mas cujo trabalho foi uma parte essencial da obra no dia a dia. Devido a esta descoberta, os egípcios têm agora uma imagem pormenorizada (e um pouco prosaica) das etapas finais da construção da Grande Pirâmide.

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